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Pederneira. Substância muito usada no fabrico de corações humanos. (Ambrose Bierce)

sábado, 26 de fevereiro de 2011

O que é Cristianismo? - Por Nietzsche

Chama-se Cristianismo a religião da compaixão. – A compaixão está em oposição a todas as paixões tônicas que aumentam a intensidade do sentimento vital: tem ação depressora. O homem perde poder quando se compadece. Através da perda de força causada pela compaixão o sofrimento acaba por multiplicar-se. O sofrimento torna-se contagioso através da compaixão; sob certas circunstancias pode levar a um total sacrifício da vida e da energia vital – uma perda totalmente desproporcional à magnitude da causa (– o caso da morte de Nazareno). Essa é uma primeira perspectiva; há, entretanto, outra mais importante. Medindo os efeitos da compaixão através da intensidade das reações que produz, sua periculosidade à vida mostra-se sob uma luz muito mais clara. A compaixão contraria inteiramente lei da evolução, que é a lei da seleção natural. Preserva tudo que está maduro para perecer; luta em prol dos desterrados e condenados da vida; e mantendo vivos malogrados de todos os tipos, dá à própria vida um aspecto sombrio e dúbio. A humanidade ousou denominar a compaixão uma virtude (– em todo sistema de moral superior ela aparece como uma fraqueza –); indo mais adiante, chamaram-na a virtude, a origem e fundamento de todas as outras virtudes – mas sempre mantenhamos em mente que esse era o ponto de vista de uma filosofia niilista, em cujo escudo há a inscrição negação da vida. Schopenhauer estava certo nisto: através a compaixão a vida é negada, e tornada digna de negação – a compaixão é uma técnica de niilismo. Permita-me repeti-lo: esse instinto depressor e contagioso opõe-se a todos os instintos que se empenham na preservação e aperfeiçoamento da vida: no papel de defensor dos miseráveis, é um agente primário na promoção da decadência – compaixão persuade à extinção... É claro, ninguém diz “extinção”: dizem “o outro mundo”, “Deus”, “a verdadeira vida”, Nirvana, salvação, bem-aventurança... Essa inocente retórica do reino da idiossincrasia moral-religiosa mostra-se muito menos inocente quando se percebe a tendência que oculta sob palavras sublimes: a tendência à destruição da vida. Schopenhauer era hostil à vida: esse foi o porquê de a compaixão, para ele, ser uma virtude... Aristóteles, como todos sabem, via na compaixão um estado mental mórbido e perigoso, cujo remédio era um purgativo ocasional: considerava a tragédia como sendo esse purgativo. O instinto vital deveria nos incitar a buscar meios de alfinetar quaisquer acúmulos patológicos e perigosos de compaixão, como os presentes no caso de Schopenhauer (e também, lamentavelmente, em toda a nossa décadence literária, de St. Petersburgo a Paris, de Tolstoi a Wagner), para que ele estoure e se dissipe... Nada é mais insalubre, em toda nossa insalubre modernidade, que a compaixão cristã. Sermos os médicos aqui, sermos impiedosos aqui, manejarmos a faca aqui – tudo isso é o nosso serviço, é o nosso tipo de humanidade, é isso que nos torna filósofos, nós, hiperbóreos! –

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

NÃO É EXATAMENTE O POEMA DE BLAKE

Pequena latência,
Em minha cuca
Bruta, cortai
...Teu jogo vão.

Não serei, cefaleia,
Um igual teu?
Ou não és tu
Tão Ser, como eu?

Pois amo a dança,
Canções, bebida,
Até que a mão cega
Me corta a vida.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Lento, animal amargo

Lento, animal amargo,
que sou, tenho sido,
amargo desde o nó de poeira e água e vento,
que nos primevos dos homens pediam ao Senhor.

Amargo como esses minerais amargos,
que nas noites de aguda solidão -
Sendo única e a mesma solidão -
trepam por minha garganta,
e, como crostas silenciosas,
asfixiam, matam, ressuscitam.

Amargo como essa voz amarga
pré-natal, pré-substancial, que diz:
nossa palavra, outrora nosso caminho,
que morreu a nossa morte,
e que em todo momento redescobrimos.

Amargo desde dentro,
desde não ser,
— minha pele, minha língua —
desde a primeva vida,
anúncio, profecia.

Lento desde séculos,
remoto — nada há detrás —,
Longínquo, distante, desconhecido.

Lento, amargo animal
que sou, que tenho sido.

(Jaime Sabines)

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

descrição honesta de mim próprio bebendo um whisky no aeroporto, digamos de mineápolis



Os meus ouvidos escutam cada vez menos as conversas, os meus
[olhos enfraquecem, continuando porém insaciados.

Vejo as pernas delas de mini-saia, de calças,
[ou de tecidos vaporosos,

Espreito cada uma, os seus rabos e coxas, pensativo,
[embalado por sonhos porno.

Ó lascivo velho jarreta, estás com os pés para a cova
[e não para os jogos e brincadeiras da juventude.

Mas não é verdade, faço apenas aquilo que sempre fiz,
[compondo as cenas desta terra, movido pela
[imaginação erótica.

Não desejo justamente estas criaturas, desejo tudo,
e elas são como um sinal de convívio extático.

Não tenho culpa de sermos feitos assim, metade de
[contemplação

desinteressada e metade de apetite.

Se depois de morrer for para o Céu, lá, terá de ser como aqui,
apenas hei-de livrar-me dos sentidos entorpecidos
[e dos ossos pesados.

Transformado em puro olhar, continuarei a absorver
[as proporções
do corpo humano, a cor dos lírios, a rua parisiense
[na madrugada de Junho.
Enfim, toda a inconcebível, a inconcebível pluralidade
[das coisas visíveis.



Czeslaw Milosz


Trad: Elżbieta Milewska e Sérgio das Neves.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Conto - Deus de Deus

Pensava em meu momento de solitude a natureza de Cristo: Verbo consubstancial com o Pai, vero Deus de vero Deus, luz da luz; duas naturezas e duas vontades resultantes da hipóstase. E que nos procedeu à vivificante pneuma, Espírito Santo, orgão divino do Logos. Relembrado e revivido na comemoração da eucaristia, corpo e alma nutridos de seu sangue adorado e comido em forma do pão; presente aos olhos, sensível ao paladar, todavia anulado.

Redentor carpinteiro, anti-hercúleo, abaixo e acima do mundo, obra mestra de Aleijadinho.

Os sinos purificam o templo dos murmúrios. Olhos, lábios, contritos fiéis em conjuro. Um Pater do santo homem, a graça eficaz contemplando a irmandade. Eu. Sozinho, no banco a meditar.

Meu frio olhar aos homens; igual ao Altíssimo seus anjos e santos.

Sonho platônico levado aos povos, não pelos reis, mas, terapeutas, estóicos tardios, o traidor dos fariseus, e um profundo desejo de morte de um império. O amor pela dor pela morte do Deus...

... Litúrgica e gregária e comtemplada paz:

Mas roubo assim minha calma por um inquietar: "Sagrado és". O homem consagrado consagra e o consagrado é feito santo. O espinho e a fraqueza da carne. Toma pelos cabelos, pelos pequenos e inocentes lábios, olhar novo e puro, torna sagrado. Utiliza, rasga, afronta, viola. Mata. Reza adora e dorme.

Por cima do altar o olhar do Cristo, por ele, pela assembléia, nós. A estátua olha e não vê.

Amém.

"Va bene, va bene, arrivo. Aspettate un momento".
(Papa Alexander VI)

Conto - Criaturas da Noite

Gosto do Cais, sabe. Gosto de ambientes assim. Gosto de ambientes tacanhos, não gosto de barulho, muita gente ou muito bicho. Quero dizer: gosto de insalubridade. Ares rarefeitos, vertigens. Para poucos. A neblina caiu pesada cobrindo a costa. Frio, é início de Inverno acho. Ali, veja os dois homens se aproximando com suas mãos nos bolsos dos casacos. Sim.

Gostou? É um bom terno. Bom. Legítimo. Não sou de usar boa roupa, boas roupas não são confortáveis. São perecíveis e exuberantes demais. Preciso de boa apresentação e boa apresentação significa sobriedade. Uso geralmente ternos baratos - ternos baratos que parecem originais. Excelentes falsificações. É como meu serviço. Sou um jogador, jogo poker.

Acho que bem lá, ao fundo, lá; um farol. Uma luz fraca, veja, cruza embaraçada a névoa. Uma fraca luz, perdida... Não estou perdido, a noite me cai bem. Passo a maior parte do tempo fugindo do Sol. Em salões, hotéis, bares, campeonatos na TV. Jogos altos. Estou falando de dívidas empresariais, ações no petróleo árabe, licitações de obras públicas. Jogo com figurões da lei e fora dela. Jogo para outros também. Sou bom, aprendi com meu pai.

Meu pai foi um perdido. Viveu de bicos, e foi morto por agiotas. Eu era um garoto esperto, rápido venci fracassado após fracassado até chegar aos grandalhões. Precisa ser cascudo. Hoje, eu sou um grandalhão. Considero ser um grandalhão não ter o rabo preso necessariamente com ninguém. Tipo você agora.

Mas, na boa. Desde que cheguei aquela luz pisca e insinua, parece um olhar de mulher. Você está vendo? Não fique tão silencioso, é estranho. Está aqui e parece não estar. Fique esperto e calado, mas não assim. Parece um pinto. Eu tenho disso, sou imaginativo, fico divagando, me contradigo e me irrito com facilidade. É a minha resiliência. É importante não parecer perdido - além de não estar perdido. Vai pegar a manha com o tempo, Senhor Quero-ser-miliciano.

Está vendo os dois otários? São dois safados mandados aqui pra me ferrar. Uma bicha qualquer que eu limpei na mesa de cartas. Mande os dois para o Inferno, e nosso delegado vai ficar sabendo do bom serviço.

... Não duraria muito. Não tem estômago pra coisa.

[três tiros. Eu não vejo a cena. Estou interessado no farol. Alguém vem... Vai levar uma bala na cabeça independente de quem for]

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Notas Mitológicas de Sombra

I - O templo entre Aqueronte e Cocito

Quem nunca observou avidamente um acidente? Quem nunca praguejou com genuína fúria? Quem nunca riu de uma dolorosa trapalhada alheia?

Em todas essas ocasiões manifestamos partes de nossa alma que normalmente segredamos. Em uma visão mais atual, todas essas ações superficialmente indesejadas estão ligadas ao ego inferior ou à Sombra (como Jung definiria). A Sombra é a oculta animalidade, é o conjunto de nossas mais desequilibradas emoções, ela é o campo metafísico dos sentimentos rejeitados pela rotina da consciência. Por que existe a Sombra? Ironicamente para nossa proteção. Ela é o alerta contra os infortúnios (Aqueronte), o depósito de nossas lamentações (Cocito), a jaula de nossa raiva (Flegetonte), o lar dos tormentos (Erídano) e o oculto da alma (Lete).

Alguém atento questiona: "Por que SUPERCIALMENTE indesejadas?"

Porque, na verdade, como qualquer outra coisa, a Sombra busca sua perpétua subsistência (sua inércia). Ela reclama por ação quando permanecemos muito tempo em estado de calmaria, incita quando estamos furiosos, ela determina quando devemos fugir ou "perder o jogo de cintura"; Muito além, como um cão selvagem, ela consome o seu dono quando não é alimentada ou domada.

Como domá-la? Você já sabe. Quando ridicularizamos alguém, quando batemos com fúria na mesa do escritório, quando berramos um palavrão, e - mais louvável - quando admiramos um arrepiante trabalho artístico de terror.



II - Sacerdotes de Perséfone


Por que alguém dedicaria a sua veia artística para um trabalho tão penoso quanto a arte das sombras?

Principalmente pelos infortúnios da vida, pela predileção por assuntos mórbidos, ou em uma linguagem mais poética pela atração por coisas obscuras. Geralmente todos esses movimentos estão conectados e, não raro, a escolha pelo terror é pouco consciente e muito instintiva. A facilidade e o fascínio de alguns está ligado a envergadura de sua Sombra.

Escrever Terror é penoso, como já dito, por uma série de fatores: O reconhecimento é praticamente nulo (embora crescente em nosso período decadente), o trabalho artístico é seguramente o mais difícil, o público realmente dedicado é pequeno e a própria criação exige bastante disposição mental. Para escrever Terror é preciso dispor de uma perseverança tão grande quanto a imortalidade dos vampiros.

O melhor para o escritor é deixar os seus textos sombrios como "alternativos". Trabalhar temas mais gerais e levar em conta as tendências de momentos. É uma das muitos verdades ridículas do mundo.



III - Os corredores sombrios

Nem só de sustos vive a obra de um escritor sombrio. O que é sombrio em uma época pode não ser em alguma outra, a única coisa que une todos os homens é que, invariavelmente, suas sombras estão bem atrás deles. Em todas as épocas existe um dogma, uma verdade escondida, uma hipocrisia, algum assunto severo e, para o autor sombrio, o assunto severo é o seu deleite. Um dos pontos negativos do Terror é também um dos seus pontos positivos: De-vastidão.

Em algumas épocas são os monstros as criaturas terríveis, em outras os deuses negros e também em outras a própria maldade humana; seus medos, seus receios, suas fúrias, e Fúrias. Em todos essas casos algo está presente: A Sombra.


Em cada caso é afetada de uma forma, embora o eixo seja sempre o mesmo (os rios do Hades).

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Sebastião no sonho

Para Adolf Loos



A mãe teve a criança sob a lua branca,
À sombra da nogueira, do sabugueiro secular,
Embriagada pela seiva da papoula, do lamento do melro; .
E silencioso

Sobre elas inclinava-se piedoso um rosto barbado,

Discreto, na escuridão da janela; e velharias
Dos antepassados
Jaziam podres. arnor e fantasia outonal.

Escuro o dia do ano, triste infância,
Quando o rapaz desceu às águas frias, peixes prateados,
Quietude e semblante;
Quando petrificado jogou-se aos corcéis em disparada,
E em noite cinzenta sua estrela vinha sobre ele.

Ou quando pela mão fria da mãe
À tardinha passava pelo outonal cemitério de São Pedro;
Um frágil cadàver jazia inerte no escuro da câmara
E erguia sobre este as pálpebras geladas

Mas ele era um pequeno pássaro em galhos nus,
O sino ao longo do novembro da noite,
O silêncio do pai, dorrnindo ao descer a espiral crepuscular.

Paz da alma. Noite de invemo solitário,
As escuras sombras dos pastores no velho lago;
Criança na cabana de palha; quão discreta
Baixava o rosto em febre negra.


- Georg Trakl.


(tradução: Cláudia Cavalcante)

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Memento Crucius



Rasgos decadentes deliceram a estrada enquanto caminhas lento - We are tearing holes in decaying the road as you walk slow.









Imagem: Michael Reedy.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Bons Selvagens


O caso de Solly Boudissan revela junto ao dos brasileiros ilhados nos distúrbios egípcios a fragilidade, inocência e ineficiência de nossas relações exteriores. Não sabemos nos dar ao respeito em política internacional, refletindo nosso execrável multiculturalismo global:

Nosso Carnaval releva a vocação nacional ao tráfico de pessoas, nosso mercado sexual, nossa servil e baixa atitude grosseira "típica" e que gostamos tanto de exaltar com filmes esteriotipados. E assim mesmo, queremos ser respeitados como se não vivêssemos midiaticamente para patrocinar a vulgaridade. Não, nem todo brasileiro é um piegas tarado, arrasador sedutor latino, ou um negro favelado psicopata. Sabemos bem. Somos também trabalhadores esforçados, donas de casa, professores, alunos, pessoas que gostam de praia e comida temperada, e que conservam uns pés frutígeros no quintal, escutam pássaros quando estão em silêncio, convivem em um ambiente com preponderância do elemento natural. Sabemos, e duvidamos da qualidade de nossa normalidade. Preferimos o exótico*: o exagerado, o piegas, o irrealístico curioso o suficiente para agradar nossos pais e agiotas do Norte. Não, não somos nós em totalidade, mas, somos muitos pensando ou arquitetando o velho e decadente teatro romântico de bons selvagens.

O efeito de tacanha tradição é estanque. Mesmo com os progressos emergentes da redemocratização. O Itamaraty é tímido em suas posturas, ambíguo por indecisão, barganha de modo equivocado com as grandes potências e cá no subúrbio do mundo e da América é visto com desconfiança justificada. Enquanto os E.U.A. enviaram aviões aos seus cidadãos no ocaso egípcio, e árabes sempre cobram satisfações das sátiras ocidentais sobre o Islão, brasileiros e mais brasileiras são vitimados, assassinados, humilhados, tendo apenas a certeza da indiferença covarde da própria nação.

Diplomacia não é turismo, meus representantes. A nação deveria ser um local de empatia e identificação política. Enquanto jornalistas são mostrados, outros tantos anônimos permanecem na obscuridade trabalhando como escravos ou passando por constrangimentos.

Por misericórdio nossos compatriotas no Egito estão bem. Por misericórdia divina, naturalmente, ou pelo mais doce acaso. Sendo mortos, torturados e esquartejados, suas supostas almas e familiares não receberiam mais que notas de lamentação. Com uns trocadinhos para o ônibus.