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Pederneira. Substância muito usada no fabrico de corações humanos. (Ambrose Bierce)

sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Dicionário Filosófico - Homens das Letras

Os letrados isolados foram as pessoas de Letras que mais serviços prestaram ao reduzido número de entes pensantes espalhados pelo mundo. Sábios verdadeiros encerrados em seus gabinetes que não argumentaram nos bancos das Universidades nem disseram as coisas pela metade nas Academias. Estes infelizes letrados têm sido quase todos perseguidos. É constituída de maneira tão miserável nossa espécie, que aqueles que marcham em caminhos já caminhados atiram sempre pedras aos que ensinam novos caminhos.

(...)

Bem posicionados, estes pobres-diabos são como o doutor Pantaleone da Commedia Dell'arte que só quer como criado o ignorantão Arlequino receando um criado demasiado sabido.

Fazei coro em louvores ao Monsenhor Superbus Fabus, madrigais à consorte, dedicai ao seu porteiro um livro de Geografia. Instruí os homens e sereis esmagado. (...) Os filósofos são tratados quais os profetas entre os judeus.

(...)

O que mais desgraça talvez um homem de Letras não é tornar-se objeto de ciúme de seus confrades, vítima de alguma cabala, o desprezo dos grandes do mundo; sua maior desgraça é o julgamento dos parvos. Vão longe às vezes, principalmente quando o fanatismo se junta à inépcia e a inépcia ao espírito de vingança. A desgraça maior vem, ainda, de que em geral não se atém a nada. Um burguês adquire um pequeno negócio, ei-lo cercado por seus confrades. Se lhe fazem uma injustiça, encontra imediatamente defensores. Ninguém ajuda o homem de Letras. Este último assemelha-se aos peixes voadores: se se eleva demais, devoram-no as gaivotas; se mergulha, comem-no os peixes maiores.

Homens públicos em uníssono pagam tributos à maledicência, e são ressarcidos em dinheiro e honras. O homem de Letras paga igual tributo sem nada receber. A si condena às feras, desde feliz à arena.



(Voltaire)

Do gênio da espécie

Do "gênio da espécie". - O problema da consciência (ou, mais precisamente, do tornar-se consciente) só nos aparece quando começamos a entender em que medida poderíamos passar sem ela: e agora a fisiologia e o estudo dos animais nos colocam neste começo de entendimento (necessitaram de dois séculos, portanto, para alcançar a premonitória suspeita de Leibniz). Pois nós poderíamos pensar, sentir, querer, recordar; poderíamos igualmente "agir" em todo sentido da palavra; e, não obstante, nada disso precisaria nos "entrar na consciência" (como se diz figuradamente).

A vida inteira seria possível sem que, por assim dizer, ela se olhasse no espelho: tal como, de fato, ainda hoje a parte preponderante da vida nos ocorre sem esse espelhamento - também da nossa vida pensante, sensível e querente, por mais ofensivo que isto soe para um filósofo mais velho.

Para que então consciência, quando no essencial é supérflua?

Bem, se querem dar ouvidos à minha resposta a essa pergunta e à sua conjectura talvez extravagante, parece-me que a sutileza e a força da consciência estão sempre relacionadas à capacidade de comunicação de uma pessoa (ou animal), e a capacidade de comunicação, por sua vez, à necessidade de comunicação: mas não, entenda-se, que precisamente o indivíduo mesmo, que é mestre justamente em comunicar e tornar compreensíveis sus necessidades, também seja aquele que em suas necessidades mais tivesse recorrer aos outros.

Parece-me que é assim no tocante a raças e correntes de gerações: onde a necessidade, a indigência, por muito tempo obrigou os homens a se comunicarem, a compreenderem uns aos outros de forma rápida e sutil, há enfim um excesso dessa virtude e arte da comunicação, como uma fortuna (92) que gradualmente foi juntada e espera um herdeiro que prodigamente a esbanje (- os chamados artistas são esses herdeiros, assim como os oradores, pregadores, escritores, todos eles pessoas que sempre vêm no final de uma longa cadeia, "frutos tardios", na melhor acepção do termo, e, como foi dito, por natureza esbanjadores).

Supondo que esta observação seja correta, posso apresentar a conjectura de que a consciência desenvolveu-se apenas sob a pressão da necessidade de comunicação - de que desde o início foi necessária e útil apenas entre uma pessoa e outra (entre a que comanda e a que obedece, em especial), e também se desenvolveu apenas em proporção ao grau dessa utilidade. Consciência é, na realidade, apenas uma rede de ligação entre as pessoas, - apenas como tal ela teve que se desenvolver: um ser solitário e predatório não necessitaria dela.

O fato de nossas ações, pensamentos, sentimentos, mesmo movimentos nos chegaram à consciência - ao menos parte deles -, é conseqüência de uma terrível obrigação que por longuíssimo tempo governou o ser humano: ele precisava, sendo o animal mais ameaçado, de ajuda, proteção, precisava de seus iguais, tinha de saber exprimir seu apuro e fazer-se compreensível - e para isto tudo ele necessitava antes de "consciência", isto é, "saber" o que lhe faltava, "saber" como se sentia, "saber" o que pensava.

Pois, dizendo-o mais uma vez: o ser humano, como toda criatura viva, pensa continuamente, mas não o sabe; o pensar que se torna consciente é apenas a parte menor; a mais superficial, a pior, digamos: - pois apenas esse pensar consciente ocorre em palavras, ou seja, em signos de comunicação, com o que se revela a origem da própria consciência.

Em suma o desenvolvimento da linguagem e o desenvolvimento da consciência (não da razão, as apenas do tomar-consciência-de-si da razão) andam lado a lado.

Acrescente-se que não só a linguagem serve de ponte entre um ser humano e outro, mas também o olhar, o toque, o gesto; o tomar-consciência das impressões de nossos sentidos em nós, a capacidade de fixá-las e como que situá-las fora de nós, cresceu na medida em que aumentou a necessidade de transmiti-las a outros por meio de signos.

O homem inventor de signos é, ao mesmo tempo, o homem cada vez mais consciente de si;. Apenas como animal, social o homem aprendeu a tomar consciência de si - ele o faz ainda, ele o faz cada vez mais.

- Meu pensamento, como se vê, é que a consciência não faz parte realmente da existência individual do ser humano, mas antes daquilo que nele é a natureza comunitária e gregária; (93) que, em conseqüência, apenas em ligação com a utilidade comunitária e gregária ela se desenvolveu sutilmente, e que, portanto, cada um de nós, com toda a vontade que tenha de entender a si próprio de maneira mais individual possível, de "conhecer a si mesmo", sempre traz à consciência justamente o que não possui de individual, o que nele é "médio" - que nosso pensamento mesmo é continuamente suplantado, digamos, pelo caráter da consciência - pelo "gênio da espécie" que nela domina - e traduzido de volta para a perspectiva gregária.

Todas as nossas ações , no fundo, são pessoais de maneira incomparável, únicas, ilimitadamente individuais, não há dúvida; mas, tão logo as traduzimos para a consciência, não aparecem mais sê-lo... Este é o verdadeiro fenomenalismo e perspectivismo, como eu o entendo: a natureza da consciência animal ocasiona que o mundo de que podemos nos tornar conscientes seja só um mundo generalizado, vulgarizado (94) - que tudo o que se torna consciente por isso mesmo torna-se raso, ralo, relativamente tolo, geral, signo, marca de rebanho, que a todo tornar-se consciente está relacionada uma grande, radical corrupção, falsificação, superficialização e generalização.

Afinal, a consciência crescente é um perigo; e quem vive entre os mais conscientes europeus sabe até que é uma doença.

Não é, como se nota, a oposição entre sujeito e objeto que aqui em interessa: essa distinção deixo para os teóricos do conhecimento que se enredaram nas malhas da gramática (a metafísica do povo). E menos ainda é a oposição entre fenômeno e "coisa em si": pois estamos longe de "conhecer" o suficiente para poder assim separar. Não temos nenhum órgão para o conhecer; para a "verdade": nós "sabemos" (ou cremos, ou imaginamos) exatamente tanto quanto pode ser útil ao interesse da grege humana, da espécie: e mesmo o que aqui se chama "utilidade' é, afinal, apenas uma crença, uma imaginação e, talvez, precisamente a fatídica estupidez da qual um dia pereceremos."



Aforismo 354, A Gaia Ciência, Friedrich Nietzsche.
Livro V - Gaia Ciência, Friedrich Nietzsche, pág. 247-250,
Companhia das Letras, ano 2001, tradução,
notas e posfácio de Paulo César de Souza.

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Insultos de Mencken

O CÉTICO

Nenhum homem acredita piamente em nenhum outro homem. Pode-se acreditar piamente numa idéia, mas não em um homem. No mais alto grau de confiança que ele pode despertar, haverá sempre o aroma da dúvida – uma sensação meio instintiva e meio lógica de que,no fim das contas, o vigarista deve ter um ás escondido na manga. Esta dúvida, como parece óbvio, é sempre mais do que justificada, porque ainda não nasceu o homem merecedor de confiança ilimitada – sua traição, no máximo, espera apenas por uma tentação suficiente. O problema do mundo não é o de que os homens sejam muito suspeitos neste sentido, mas o de que tendem a ser confiantes demais – e de que ainda confiam demais em outros homens, mesmo depois de amargas experiências.

Acredito que as mulheres sejam sabiamente menos sentimentais, tanto nisto como em outras coisas.Nenhuma mulher casada põe a mão no fogo por seu marido, nem age com se confiasse nele.Sua principal certeza assemelha-se à de um batedor de carteiras:

a de que o guarda que o flagrou poderá ser subornado.



O OPERÁRIO

Todas as teorias democráticas, sejam burguesas ou socialistas, levam necessariamente em seu recheio algum conceito de dignidade do trabalho. Se os despossuídos fossem privados desta ilusão de que seus sofrimentos na linha de montagem são, de alguma forma, louváveis e agradáveis a Deus, só lhes restaria em seu ego uma dor de barriga. Não obstante, uma ilusão é uma ilusão, e esta é das piores. Ela é fruto da confusão entre um artista que se orgulha do seu trabalha e a docilidade canina e penosa do operário em sua máquina. A diferença é importante e enorme. Mesmo sem qualquer remuneração, o artista continuará a trabalhar do mesmo jeito; sua verdadeira recompensa, de fato, é quase sempre tão mísera que ele chega a passar fome. Mas suponha que o operário de uma fábrica de tecidos não ganhe nada por seu trabalho: continuaria trabalhando do mesmo jeito? Pode-se imagina-lo submetendo-se voluntariamente a uma compulsão irresistível de expressar sua alma em mais 200 pares de calcinhas femininas?



O CIENTISTA

O valor dado pelo mundo sobre os motivos que levam os cientistas a fazer isto ou aquilo é freqüentemente e grosseiramente injusto e inexato. Considere, por exemplo, dois motivos: uma mera curiosidade insaciável e o desejo de fazer o bem. O último é considerado muito mais importante que o primeiro e, no entanto, é o primeiro que aciona um dos homens mais úteis que a raça humana produziu até hoje: o pesquisador científico O que realmente o desperta não é a idéia de prestar um serviço de araque, mas uma sede ilimitada e quase patológica de penetrar o desconhecido, de descobrir o segredo, de chegar aonde nunca se tinha chegado. Seu protótipo não é o de benfeitor que liberta seus escravos, nem o do bem samaritano que levanta os caídos, mas o de um sabujo farejando furiosamente em busca de infinitos buracos de ratos.



O EMPRESÁRIO

Existe um sólido instinto que põe o empresário abaixo de todos os outros profissionais e joga-lhe às costas um fardo de inferioridade social do qual não consegue se livrar, mesmo na América. O próprio empresário reconhece esta suposição de sua inferioridade, mesmo quando protesta contra ela. É o único homem, além do verdugo e do gari, que vive se desculpando por sua ocupação, para fazer parecer, quando atinge o objetivo de seu trabalho – i. e., ter ganho uma montanha de dinheiro --, que dinheiro não era o objetivo de seu trabalho.



O HOMEM MÉDIO

Costuma-se jogar na cara dos marxistas, com a sua concepção materialista da História, que eles subestimam certas qualidades espirituais do homem que não
dependem de quanto ele ganhe ou deixe de ganhar.

O argumento é o de que essas qualidades colorem as aspirações e atividades do homem civilizado tanto quanto são coloridas pela sua condição material, tornando assim impossível simplesmente reduzir o homem a uma máquina econômica. Como exemplos, os antimarxistas citam o patriotismo, a piedade, o senso estético e a vontade de conhecer Deus. Infelizmente, os exemplos são mal escolhidos. Milhões de homens não ligam para o patriotismo, a piedade ou o senso estético, não têm o menor interesse ativo em conhecer Deus.

Por que os antimarxistas não citam uma qualidade espiritual que seja verdadeiramente universal? Pois aqui vai uma. Refiro-me à covardia. De uma forma ou de outra, ela é visível em todo ser humano; serve também para separa o homem de todos os outros animais superiores. A covardia, acredito, está na base de todo o sistema de castas e na formação de todas as sociedades organizadas, inclusiva as mais democráticas. Para escapar de ir à guerra ele próprio, o camponês deva de mão beijada certos privilégios aos guerreiros – e destes privilégios brotou toda a estrutura da civilização. Vamos recuar mais ainda no tempo. Foi a propriedade que levantou a lebre de que uns poucos homens relativamente corajosos foram capazes de acumular mais posses do que hordas de covardes – e, como se fosse pouco, de mantê-las depois de acumuladas.



O DONO DA VERDADE

O homem que se gaba de só dizer a verdade é simplesmente um homem sem nenhum respeito por ela. A verdade não é uma cosia que rola por aí, como dinheiro trocado; é algo para ser acalentada, acumulada e desembolsada apenas quando absolutamente necessário. O menor átomo da verdade representa a amarga labuta e agonia de algum homem; para cada pilha dela,, há o túmulo de um bravodono da verdade sobre algumas cinzas solitárias e uma alma fritando no Inferno.



O FILÓSOFO

Não há registro na história humana de um filósofo feliz: só existem nos contos da Carochinha. Na vida real, muito cometeram suicídio; outros mandaram seus filhos por afora e surraram suas mulheres. Não admira. Se você quiser descobrir como um filósofo se sente quando se empenha na prática de sua profissão, dê um pulo ao zoológico mais próximo e observe um chimpanzé na sua chatíssima e infindável tarefa de catar pulgas. Ambos –o filósofo e o chimpanzé – sofrem como o diabo, mas nenhum dos dois consegue ganhar.



O ALTRUÍSTA

Uma grande parte do altruísmo, mesmo quando perfeitamente honesto, baseia-se no fato de que é desconfortável ver gente infeliz ao nosso redor. Isto se aplica especialmente à vida familiar. Um homem faz sacrifícios para satisfazer os caprichos de sua mulher, não porque adore desistir da idéia de comprar o que ele realmente quer para ele, mas porque seria pior ainda vê-la d cara amarrada na mesa do jantar.



O ICONOCLASTA

O iconoclasta se afirma quando prova com suas blasfêmias que este ou aquele ídolo não passa de uma besta – e deixa cheio de dúvidas pelo menosum dos que o ouvem. A liberação da mente humana avançou muito quando alguns gaiatos depositaram gatos mortos em santuários e depois saíram pelas ruas espelhando que aquele deus no santuário era uma fraude – provando a todo mundo que a dúvida era uma coisa legítima. Um relincho vale por 10 mil silogismos.



O ESCRAVO

Não me diga o que ele vê de tão divertido a respeito de Deus, ou qual artista de circo ele segue em política, ou como agüenta submeter-se àquela mulher. Diga-me apenas como ele ganha a vida. Um homem que consegue casa e comida de maneira ignominiosa será, inevitavelmente, um homem ignominioso.



INTERMEZZO SOBRE A MONOGAMIA

O predomínio do casamento monogâmico no reino de Cristo é comumente atribuído a considerações éticas. Isto é tão absurdo quanto atribuir à guerras a mesma consideração. A simples verdade é a de que tais considerações não passam de deduções extraídas da experiência e são rapidamente abandonadas quando a experiência se volta contra elas.

No presente caso, a experiência ainda está abundantemente a favor da monogamia; os homens civilizados a preferem, porque acham que a monogamia funciona. E por que funciona? Porque é o mais eficiente de todos os antídotos disponíveis aos alarmes e terrores da paixão. A monogamia, em suma, mata a paixão – e a paixão é o mais perigoso de todos os inimigos da supostaci vilização, a qual é baseada na ordem, no decoro, na repressão, na formalidade, no trabalho e na disciplina.

O homem civilizado; o homem civilizado ideal; é aquele que nunca sacrifica a segurança dos seus por paixões particulares. Ele chega à perfeição quando deixa de
amar apaixonadamente; quando reduz a mais profunda de suas experiências instintivas, do nível do êxtase para o nível de um mero estratagema para municiar exércitos ou construir fábricas, mandar reformar suas roupas, reduzir a mortalidade infantil, arranjar mais inquilinos para cada senhoria ou informar a polícia sobre o que qualquer cidadão pode estar fazendo de dia ou de noite.

A monogamia consegue tudo isto ao destruir o apetite.

Ela força as duas partes contratantes a uma intimidade tão persistente quanto não atenuada; estão sempre firmemente de acordo em muitos pontos. Pouco apouco, o mistério do relacionamento se evapora e o homem e a mulher atingem aquele ponto assexuado de irmão e irmã. Portanto, aquele maximum de tentação de que fala George Bernard Shaw já contém em si as raízes da sua própria decadência. Todo marido começa por beijar uma garota bonita (sua esposa) e termina maquiavelicamente evitando beijar aquela com quem ele partilha diariamente as refeições, os livros, as toalhas de banho, a carteira, os parentes, as ambições, os segredos, as doenças e os negócios – um procedimento tão romântico quanto o de mandar que lhe engraxem os sapatos. Nem mesmo o inato sentimentalismo do homem onsegue superar o desgosto e a chatice disso tudo. E nem mesmo a capacidade histriônica da mulher pode ver nisto qualquer sombra de volúpia ou espontaneidade.

Os defensores da monogamia, iludidos pelos seus reflexos morais, deixam de usufruir todas as vantagens que há nela. Considere, por exemplo, a importância moral de preservar a virtude dos não-casados; ou seja, daqueles ainda capazes de se apaixonar.

O atual plano para se lidar com, digamos, um jovem de vinte anos é cercá-lo de espantalhos e proibições; para tentar convencê-lo logicamente de que a paixão é perigosa. Isto é um abuso e uma imbecilidade; abuso, porque ele próprio já sabe que ela é perigosa; e imbecilidade, porque é impossível sufocar uma paixão lutando contra ela.

A maneira de matá-la é dar-lhe corda sob condições desfavoráveis e desanimadores; para vergá-la ao chão, pouco a pouco, até reduzí-la a um absurdo ou horror. Muito mais ainda poderia ser conseguido se fosse proibida a poligamia a estes jovens antes do casamento, mas permitida a monogamia. A proibição, neste último caso, seria relativamente fácil de impor, ao invés de impossível, como no outro. A curiosidade ficaria satisfeita; a natureza sairia da jaula; mesmo o romance teria a sua chance, 99% dos jovens se submeteriam, mesmo porque seria mais fácil submeter-se do que resistir a ela.

E o resultado? Obviamente seria louvável – isto é, aceitando-se a atual definição de louvável. O resultado final, seis meses depois, seria um jovem desiludido e no cabresto, tão desprovido de paixão quanto um velho de oitenta anos – em suma, o cidadão ideal do reino de Cristo.



MEDITAÇÃO DE SÁBADO

Às vezes chego a suspeitar de que meu principal problema é o fato de ser desprovido do que se costuma chamar de dons espirituais. Ou seja, sou incapaz de experiência religiosa, em qualquer sentido. Algumas cerimônias religiosas me interessam esteticamente e, com alguma freqüência, até me divertem, mas não extraio delas nenhum estímulo, nenhuma sensação de exaltação, nenhuma catarse mística.

Neste departamento, sou tão palerma quanto o organista da igreja, o coroinha do altar ou o próprio arcebispo. Quando me sinto deprimido e cheio de miséria, não tenho o menor impulso de pedir ajuda, ou mesmo consolo, nos poderes sobrenaturais. Assim, a generalidade das pessoas religiosas continua misteriosa para mim, além de vagamente insultuosa, assim como sou inquestionavelmente insultuoso a elas. Para mim, um homem rezando e outro portando um pé de coelho para lhe dar sorte são igualmente incompreensíveis. Esta falta de compreensão tem-me causado inimizades, acredito que duradouras. Tenho ojeriza a qualquer homem religioso, e todos os homens religiosos que conheço têm ojeriza a mim.

Sou apenas um ateu militante e não tenho a menor objeção que se vá a igrejas, desde que honestamente. Eu próprio já entrei em igrejas mais de uma vez, procurando sinceramente sentir o estalo de que tanto falam as pessoas religiosas. Mas nem mesmo na Catedral de São Pedro, em Roma, senti o mínimo sintoma do estalo. O máximo que já senti no mais solene momento da mais pretensiosa cerimônia religiosa foi um deleite sensual por sua beleza – um deleite exatamente igual ao que me invade quando ouço, por exemplo, Tristão e Isolda ou Quarta Sinfonia de Brahms. O efeito de tal música é, na realidade, mais agudo que o da liturgia, mas só porque Brahms me comove mais poderosamente que os santos.

Como se vê, esta deficiência é uma desvantagem num mundo populado, em esmagadora maioria, por homens inerentemente religiosos. Isto me afasta de meus semelhantes e torna difícil para mim compreender muitas de suas idéias e não poucos de seus atos. Vejo-os responder, de maneira firme e constante, a impulsos que a mim parecem inexplicáveis. Pior ainda, faz com que eles me compreendam, a ponto de me infligirem sérias injustiças.

Não conseguem se livrar da idéia de que, por ser apático aos conceitos que os comovem profundamente, só posso ser um homem de tal aberração moral que devo ser mantido à distância. Nunca cruzei com um homem religiosa que não revelasse essa suspeita. Não importa a sua sinceridade em tentar entender o meu ponto de vista, sempre termina por bater em alarmada retirada. Todas as religiões ensinam que o não-conformismo é pecado; muitas delas fazem disto o mais negro dos pecados, e o punem severamente, se tiverem poder suficiente. É impossível para este homem tão religioso duvidar da justiça desse julgamento. Ele simplesmente não consegue imaginar uma regra de conduta que não se baseie no temor a Deus.

Devo acrescentar que minha deficiência reside no impulso religioso fundamental, Não na mera credulidade teológica. Não me mantenho longe da igreja por não ser capaz de acreditar em seus dogmas atuais. Para dizer a verdade, alguns me parecem bastante razoáveis e, provavelmente, discordo deles com menos veemência do que muitos que lhes são assíduos devotados. Entre minhas experiências curiosas, há alguns anos, houve a de tentar um ardente católico que não acreditava na infalibilidade papal.

Tratava-se de um fiel filho da igreja, e sua incapacidade para aceitar o dogma o angustiava. Provei-lhe, e ele pareceu satisfeito, que não havia nada de intrinsecamente absurdo na tal infalibilidade papal – já que, se os dogmas que ele
já tinha adotado fossem verdadeiros, este provavelmente também o seria. Algum tempo depois, quando este homem estava nas últimas, fui visitá-lo e ele me agradeceu com aparente sinceridade por ter resolvido sua velha dúvida.

Mas nem ele conseguia compreender minha falta de religião. Suas últimas palavras para mim foram as de esperança que eu abandonasse minha teimosia em relação a Deus e levasse uma vida mais pia. Morreu firmemente convencido de que eu estava condenado ao Inferno – e, o que é pior, tendo feito por merecê-lo.

(Trad: Ruy Castro)

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

"Da temporalidade do escritor"

Na superprofissionalizada época atual, a vida da maioria dos escritores é mais aborrecida do que a sua obra. Isto tem uma explicação. Em muitos casos, o escritor de certo êxito, premido pelas editoras, se converteu em uma espécie de máquina do tempo, que trabalha com ritmos e horários fixos. Cumpre uma rotina tão previsível quanto a de um relógio de parede. Falamos de um tipo de escritor que costuma passar a maior parte de sua vida fechado num espaço pequeno e que, de vez em quando, assiste à televisão ou pratica jogging para se distrair. Escreve sem nenhum contato com o mundo exterior e sente na própria pele o que é o trabalho mais solitário do mundo.

Nem sempre foi assim. A personalidade do escritor é mutável e se transformou no correr dos anos. Entre Homero (ou o que signifique este nome) e Agatha Christie, as diferenças quanto ao modo de ver e exercer as Letras são tão grandes como entre as próprias sociedades nas quais cada um está imerso. Nos tempos de Cervantes, Marlowe ou Quevedo, por exemplo, a literatura costumava ser um complemento de vida. Os escritores eram diplomatas, soldados, secretários ou espiões e dedicavam parte de seu tempo livre e de suas experiências para deixar um rastro literário, embora com poucas pretensões de posteridade e, não raro, no anonimato. Shakespeare - não há uma só página escrita por ele e sequer temos certeza de quem ele realmente foi - é um bom exemplo. Esta tendência se manteve até o fim do Século XVIII, quando nomes como Voltaire e Goethe inauguraram a Era do "escritor estrela". Influente, admirado e solicitado em cortes e palácios como sábio e enfeite cultural, proporcionando prestígio a seus patronos e benfeitores.

Durante o século XIX, e até o período entreguerras do século XX, surge o escritor bon vivant, perdulário, amante de grandes viagens, das mansões principescas, dos salões repletos de senhoras elegantes, de aristocratas e de burgueses dedicados a política ou finanças. É o escritor "celebridade do mundo", a quem principalmente o jornalismo e os avanços de comunicação atribuem o papel de conselheiro universal. Quando morre um escritor deste quilate, as despedidas são as de um Chefe de Estado. Ou um pouco menos.

Em nossos dias, especialmente nos países desenvolvidos, o escritor também é uma celebridade. Ou melhor, um famoso da mídia submetido ao imperativo da notoriedade: dar sempre as mesmas respostas às mesmas perguntas e viver açoitado pela angústia da urgência editoral. Hoje, a literatura faz parte do cansaço cultural, da moda, do espasmo e da alteração. Assim resta pouco tempo ao escritor para desfrutar o ócio e a lentidão criadora, tão necessários para o amadurecimento de uma visão própria do mundo.

Entre os dois extremos - de um lado, o escritor celebridade; do outro, aquele que se isola do mundo, ignorando a pressão das editoras e desprezando a opinião que se tem dele, existe um outro tipo de escritor que alcançou o apogeu da popularidade literária sem renunciar a observação do mundo a partir da perspectiva histórica. São escritores que não desistiram da experiência pessoal e que a transformaram na base de sua obra.



Fernando Martinez Laínez.

Algo sobre a vida

Acho que um dos pensamentos mais corrompidos da História é a ideia atual sobre felicidade. O que é a felicidade, caralho? Nisso concordo com um poeta quando versava a felicidade:


"Faz calor,

Estou no campo.

Hoje, sob sombra de árvores;

Tomo uma jarra de água fresca".



Essa é a felicidade, com certeza! O conceito de felicidade é um pouco cinematográfico e falso. É absurdo crer que vais ganhar muito dinheiro, tão logo sendo muito feliz. Também não acredito na visão pessimista pela qual a vida nos maltrata. Claro, a vida me maltrata, e ao mesmo tempo dá-me tudo. Dá a sede e a água, dá-me a fome, mas também o pão. Não há uma vida completamente infeliz do início ao fim. Balela! Mesmo na prisão, pode olhar pelas barras para ver um jardim, e aquele que está enfermo e não pode andar conserva ao menos a esperança de algum dia fazê-lo. Às vezes me desespero, levo dois anos na cama e penso que se fosse católico e estivesse pagando algum castigo Deus já estaria me devendo. Eu me pergunto: O que é justo e não é? Mas sei que no fim das contas a vida tem o sentido que se quer dar.





(Jaime Sabines. Adapt. Dom Ramon)

O Intelectual Radical

Texto da palestra de Noam Chomsky apresentada no Centro de Abrigo, em Madison, Wisconsin, 08 abril de 2010.


Eu não tenho que dizer o quão satisfeito e grato sou por esta homenagem, que também oferece uma oportunidade para olhar para trás ao longo dos anos. O que vem à mente com relevância particular é a minha mais tenra idade, talvez porque eu tenha pensado muito sobre isso nos últimos tempos, por outros motivos. Nos meus anos de formação pessoal, digo, e acho, infelizmente, que a significância desses tempos primeiros vai além.

Eu sou antigo apenas o suficiente para lembrar dos discursos radiofônicos de Hitler há 75 anos. Não entendia as palavras, mas não poderia deixar de entender o tom de ameaça e as multidões frenéticas. O primeiro artigo político que escrevi foi em fevereiro de 1939, logo após a queda de Barcelona. Tenho certeza de que não foi nada memorável. Lembro-me um pouco dele, mas muito mais claramente o clima de medo e mau agouro. Iniciado com as palavras: "Áustria cai, cai a Tchecoslováquia, e agora cai Barcelona" - e a Espanha com ela, alguns meses mais tarde. São palavras que sempre estiveram em minha mente, juntamente com o medo, e a sensação de que as nuvens escuras do fascismo acolhiam a Alemanha e depois toda a Europa e talvez além, uma força crescente de horror inimaginável. Embora ninguém pudesse prever o Holocausto, Kristallnacht tinha acontecido apenas algumas semanas antes, a fuga desesperada de refugiados vinha se acumulando durante anos, muitos incapazes de acreditar no que estava acontecendo.

Naqueles anos, eu também tive a minha primeira experiência com os intelectuais radicais - embora eles não fossem chamados "intelectuais" como o termo é usado politicamente, aplicando-se a pessoas com status e privilégios que estão em condições de atingir grande público com pensamentos sobre assuntos e preocupações humanas. E uma vez que atribuem privilégio, a pergunta sempre surge sobre a forma como eles estão usando essa responsabilidade, temas muito vivos naqueles anos no trabalho de Erich Fromm, Russell e Dewey, Orwell, Dwight MacDonald, e outros, que logo vim a estudar. Mas os intelectuais radicais da minha infância eram diferentes. Eles eram meus parentes trabalhadores de classe, em Nova York, em sua maioria desempregados durante a Depressão, apesar de um tio, com uma deficiência, manter uma banca de jornais graças às medidas do New Deal e por elas capaz de ajudar e ser auxiliado pela família. Meus pais puderam ajudar os demais também, por seu viés. Como professores de hebraico em Filadélfia tinham o dom raro do emprego garantido, de modo que tivemos um fluxo de tias e primos permanecendo conosco periodicamente.

Meus parentes de Nova York na maior parte tiveram uma educação formal limitada. Meu tio, que dirigia a banca e foi uma enorme influência na minha infância, estudou até a quarta série. Mas foi um dos círculos intelectuais mais animados que já fiz parte, mesmo periférico e infantil na ocasião. Haviam discussões constantes sobre o desempenho recente do Quarteto de Cordas de Budapeste, das controvérsias entre Freud e Stekel, sobre a política radical e ativismo, atingindo picos impressionantes. Particularmente significativas na época foram as greves urbanas, apenas um pequeno passo dos trabalhadores em prol de assumir as fábricas e mudar radicalmente a sociedade - idéias que devem ser muito vivas hoje.

Além de fator importante mediante as medidas do New Deal, o crescente ativismo contra o trabalho despertou grande interesse no mundo dos negócios. Suas principais figuras advertiam sobre "o perigo que enfrentam industriais [com] o crescente poder político das massas", e a necessidade de intensificar "a eterna batalha pelas mentes dos homens", e instituir programas para superar esta ameaça à ordem e disciplina, posta de lado durante a guerra, mas retomada mais tarde com extrema dedicação e escala. Os EUA são incomuns entre as sociedades industriais em sua comunidade de negócios, altamente consciente de classe, incansavelmente travando uma guerra de classes amarga, e em anos anteriores, com níveis anormais de violência, posteriormente, através de ofensivas propagandas massificadoras.

Alguns de meus parentes estavam próximos ao Partido Comunista, outros foram melancolicamente anti-comunistas de esquerda, e alguns, como meu tio, eram anti-bolchevistas, mais à esquerda. Entre as pessoas próximas ao Partido, quando não existia ritualística obediência à Rússia, sentia que a maior parte focava o seguinte: direitos civis e movimentos de trabalho, reforma da previdência social, e muito necessária mudança social. O Partido foi uma força que não previu vitórias rápidas, mas esteve presente, pronto, persistente, dedicado à passagem de uma derrota temporária para a próxima luta, algo que realmente falta hoje. Também foi ligado a um movimento mais amplo de trabalhadores da educação e associações, e não menos importante, pois deu oportunidade para uma tia minha costureira desempregada passar uma semana em um Unity House fraternizada com outros que deveriam ter vivido sempre em um mundo muito triste. Ainda assim lembro da minha própria experiência pessoal - limitada, claro - como um tempo cheio de esperança, muito ao contrário de hoje, em circunstâncias que são objetivamente muito menos graves.

Em 1941, eu estava gastando tanto tempo quanto podia no centro de Manhattan, gravitando para outros grupos de intelectuais radicais, nas livrarias pequenas na avenida 4, local de atividade para refugiados anarquistas da revolução espanhola de 1936, ou no escritório do anarquista Freie Arbeiter Stimme em Union Square, nas proximidades. Eles também não se encaixavam na fórmula-padrão intelectual. Mas, se pelo termo significativo de serem pessoas que pensam seriamente sobre a vida e a sociedade, seus problemas e possíveis soluções, em contexto de conhecimento e compreensão, então eram de fato intelectuais: falo dos impressionistas. Eles estavam muito felizes por passar muito tempo com um garoto jovem fascinado pela revolução anarquista de 1936. Pensava então, e ainda penso, ter sido um dos pontos altos da civilização ocidental, e, de certa forma um farol para um futuro melhor. Eu apreendi um monte de material que usaria 30 anos mais tarde, ao escrever sobre o tema, estando a maioria ainda na Impressão.

Dentre os mais memoráveis destes materiais conservei uma coleção de documentos primários sobre a coletivização, publicado em 1937 pela CNT, o sindicato anarco-sindicalista - que está comemorando o seu centenário este ano. Uma contribuição documental que tem ressoado em minha mente desde então, sobre os camponeses da aldeia de Membrilla. Eu gostaria de citar partes dele:

"Nos [] barracos miseráveis [de Membrilla] vivem os pobres habitantes de uma província miserável, oito mil pessoas, mas as ruas não são asfaltadas, a cidade não tem jornais, nenhum cinema, nenhum café, nenhuma biblioteca .... Alimentos, roupas e ferramentas foram distribuídos equitativamente a toda a população. Dinheiro foi abolido, o trabalho, coletivizado, todos os bens passaram para a comunidade, o consumo foi socializado. Foi, no entanto, não uma socialização da riqueza, mas de pobreza .... Toda a população vive como em uma grande família, funcionários, delegados, o secretário dos sindicatos, os membros do conselho municipal, todos eleitos, atuam como chefes de uma família, mas eles são moderados, porque privilégio especial ou corrupção não serão tolerados. . Membrilla é talvez a mais pobre aldeia de Espanha, mas é a mais justa".

Nessas palavras, sobre alguns dos camponeses mais pobres do país, a captura com eloquência das conquistas e promessas da revolução anarquista. Conquistas não repentinas, como Sol primaveril. Elas foram o resultado de muitas décadas de luta, experimento, de repressão brutal - e de aprendizagem. O conceito de como uma sociedade justa deve ser organizada estava na mente da população, quando a oportunidade surgiu. A experiência de criar um mundo de liberdade e justiça foi esmagada muito em breve pelas forças combinadas do fascismo, do stalinismo e da democracia liberal. Centros de poder global entenderam muito bem que devem se unir para destruir essa perigosa ameaça à subordinação e disciplina antes de passar para a tarefa secundária de dividir os espólios.

Nos últimos anos tenho sido às vezes capaz de compreender em primeira mão, pelo menos, um pouco da vida das pessoas pobres que sofrem brutal repressão e violência na atualidade - nas favelas miseráveis do Haiti, no auge do terror nos anos 90, apoiado por Washington, sobre o qual os fatos ainda são reprimidos, e altamente relevantes para as tragédias de hoje. Ou em campos de refugiados do Laos, onde dezenas de milhares de pessoas se amontoavam, expulsas de suas casas por um exército mercenário da CIA depois de anos tentando sobreviver em cavernas abaixo de bombardeio implacável que nada tinha com a guerra no Vietnã, uma das graves atrocidades da história moderna, ainda desconhecidas, que continuam a matar muitas pessoas, porque a Terra está saturada com munições não deflagradas. Ou na Palestina e no sudeste da Turquia e muitos outros lugares. Dentre eles, particularmente importante para mim por motivos pessoais, é o sul da Colômbia, onde os camponeses, povos indígenas e afro-colombianos, estão sendo expulsos de suas terras devastadas pelo terror e pela guerra química, chamada aqui de "fumigação", como se de algum modo validasse um direito de destruir os outros países com pretextos que fabricamos - pessoas capazes da simpatia mais milagrosa e humanidade, apesar do sofrimento terrível em que desempenham um papel importante, ao olhar para o outro lado - embora não em Madison, graças ao trabalho do grupo de apoio aqui na Columbia.

Uma das coisas que aprendi nas livrarias anarquistas e escritórios de 70 anos atrás foi que eu estava errado em tomar a queda de Barcelona em 1939 como a sentença de morte da liberdade na Espanha. Tombou dois anos antes, em maio de 1937, quando a classe operária industrial foi esmagada pela repressão comunista liderada com seus exércitos comunistas varrendo o campo e destruindo os coletivos, com o apoio das democracias liberais e com Hitler e Mussolini esperando nos bastidores - uma enorme tragédia para a Espanha, embora inglória vitória antecipada para os predadores.

Alguns anos depois eu saí de casa para estudos de pós-graduação em Harvard, onde tive minha primeira experiência extensa com o mundo da elite intelectual. Na chegada, fui à festa padrão da faculdade para os estudantes, alegrada por um filósofo muito distinto com um relato intrigante da Grande Depressão - que, ele me assegurou, não ocorrera em lugar algum. Foi uma invenção liberal. Não houveram trapaceiros vindo à nossa porta em desespero no início dos anos 30, não foram mulheres trabalhadoras espancadas pelas forças de segurança, enquanto em greve em uma fábrica têxtil pela qual passei em um carrinho com a minha mãe quando eu tinha uns cinco anos, nenhum dos meu parentes desempregados. Que poucos empresários possam ter sofrido, mas nada além disso.

Descobri logo que este estava longe de ser uma exceção, porém não quero sugerir que era o típico dentre os intelectuais de Harvard. A maioria era "liberal a Stevenson", pessoas que aplaudiram quando Stevenson disse na ONU que temos de defender o Vietnã de "agressão interna", do "assalto de dentro", como colocara o presidente Kennedy. Palavras que ouvimos hoje de novo, por exemplo, no último domingo, no NYT, onde se lê que após a conquista de Marja na província de Helmand;

"Os fuzileiros teriam colidido com uma identidade Taliban tamanha que o movimento parece mais com a única organização política de uma cidade com um só partido, com uma influência que afeta a todos. 'Temos de reavaliar nossa definição da palavra "inimigo", disse o brigadeiro. General Larry Nicholson, comandante da brigada expedicionária de fuzileiros na província de Helmand. 'A maioria das pessoas aqui se identifica como o Taliban ... Temos que reajustar o nosso pensamento por isso não estamos tentando perseguir os talibãs de Marja, nós estamos tentando perseguir o inimigo para fora ", disse ele."

Um problema que sempre atormentou os conquistadores, muito familiar para os EUA do Vietnã, onde certo estudioso da liderança do governo dos EUA em um livro bastante elogiado lamentou que o inimigo interno fosse um único "partido verdadeiramente de massas baseado na política no Vietnã do Sul" e qualquer esforço nosso para competir com ele politicamente seria como um conflito entre um peixinho e uma baleia. Então tiríamos de superar essa força política, usando nossa vantagem comparativa; a violência - como nós fizemos. Outros tiveram problemas semelhantes: por exemplo, os russos no Afeganistão na década de 1980, uma invasão que também provocou indignação ao ponto de passarmos em revista os crimes de guerra. Especialista em Oriente Médio, William Polk nos lembra que os russos "tiveram muitas vitórias militares, também através de seus programas de ação cívica que realmente conquistaram muitas das aldeias" - e, de fato, como sabemos, a partir de fontes confiáveis, fora criada substancial liberdade em Cabul, especialmente para as mulheres. Mas, para continuar com Polk, "na década de sua participação, os russos ganharam quase todas as batalhas ocupando em um momento ou outro virtualmente cada centímetro do país, mas eles perderam a guerra .... Quando tangiram, os afegãos retomaram a forma tradicional de vida ".

Os dilemas enfrentados por Obama e McChrystal não são exatamente os mesmos. O inimigo a quem os marines estão tentando expulsar de suas aldeias não tem praticamente nenhum apoio externo. Os invasores russos, em contraste, estavam enfrentando uma resistência que recebeu apoio vital dos EUA, Arábia Saudita e Paquistão, e ainda dos mais extremados radicais fundamentalistas islâmicos que poderiam encontrar - inclusive aqueles que aterrorizaram mulheres em Cabul - e estavam armando-os com armas avançadas, enquanto cumpriam o programa de islamização radical do Paquistão: mais um dos presentes de Reagan para o mundo, juntamente com as armas nucleares do Paquistão. O objetivo dessas operações nos EUA não foi defender o Afeganistão. Foi explicado francamente pelo chefe da CIA em Islamabad, que coordenava as operações. O objetivo era "matar soldados soviéticos". Ele se gabava da "amada", desta "nobre meta", deixando muito claro, em suas palavras, que "a missão não era libertar o Afeganistão", que ele não gostava. Você está familiarizado eu tenho certeza com algo que Zbigniew Brzezinski também possui em seus meandros.

Até o início dos anos 60 eu estava profundamente envolvido em atividades contra a guerra. Não vou entrar em detalhes, embora eles pudessem nos dizer muito sobre o clima intelectual, especialmente na liberal Boston. Em 1966, meu envolvimento era profundo o suficiente para que minha esposa voltasse à faculdade obter um diploma depois de 17 anos por causa da probabilidade de uma longa pena de prisão - que chegou muito perto. O julgamento já havia sido anunciado, mas cancelado depois da ofensiva do Tet, o que convenceu a comunidade empresarial de que a guerra estava ficando muito cara, e em qualquer caso, os objetivos principais da guerra haviam sido atingidos - outra longa história. Depois da ofensiva do Tet, e a mudança na política oficial, de repente, descobriu-se que todos tinham sido adversários de longa duração da guerra - em profundo silêncio. Memorialistas de Kennedy reescreveram suas notas para apresentar o seu herói como uma pomba - perturbada pelas revisões radicais ou pelas provas documentais extensamente mostradas de que JFK iria considerar a suspensão de uma guerra que ele sabia ser impopular internamente somente após uma vitória assegurada.

Mesmo antes da ofensiva do Tet, houve crescentes dúvidas nesses círculos, não sobre o sentimental das noções de certo/errado que reservamos para nossos opositores, mas sobre a validade de sucesso retórico e prático da continuidade do "assalto de dentro". Um certo paradigma foi proposto nas reflexões de Arthur Schlesinger, quando estava começando a ficar preocupado se a vitória poderia ser tão facilmente apanhada. Como ele disse, "todos rezamos" para que os falcões tenham razão e que a onda do dia trague a vitória. E se isso acontecer, estaremos louvando a "sabedoria e sentido de Estado" do governo dos EUA em ganhar uma vitória militar, deixando "o trágico país eviscerado e devastado pelas bombas, queimado pelo napalm, transformado num deserto de desfolhação química, uma terra de ruína e escombros, com seu "tecido político e institucional" pulverizado. Mas a escalada provavelmente não terá sucesso e provará ser cara demais para nós, por isso, talvez a estratégia deva ser repensada.

Pouco mudou hoje, quando Obama é aclamado como um dos principais opositores da invasão do Iraque, porque foi um "erro estratégico", palavras que poderiam ser lidas no Pravda, em meados da década de 1980. A mentalidade imperial é muito enraizada.

É triste dizer, porém verdadeiro, que dentro do espectro do imperialismo liberal dominante são os "mocinhos". Uma alternativa possível é revelada pelas pesquisas mais recentes. Quase metade dos eleitores dizem que as medidas propostas pela Tea Party estão mais perto de seus pontos de vista do que o presidente Obama, a quem menos preferem agora. Há uma repercussão interessante. 87% das pessoas da chamada "classe política", afirmam seus pontos de vista próximos a Obama. 63% dos que são chamados de "americanos do Mainstream" dizem que suas opiniões estão mais próximos da Tea Party. Em praticamente todos os assuntos, os republicanos são confiados pelos eleitores mais do que os democratas, em muitos casos por dois dígitos. Outras evidências sugerem que essas pesquisas estão registrando desconfiança ao invés de confiança em algo. O nível de raiva e medo no país é imcomparável dentro do que posso lembrar na minha vida. E desde que os democratas estão no poder, há revolta contra o momento atual sócio-econômico-político atribuído a eles.

Infelizmente, estas atitudes são compreensíveis. Por mais de 30 anos, a renda real para a maioria da população estagnou ou caiu, os indicadores sociais têm deteriorado desde meados da década de 1970, após acompanhamento rigoroso do crescimento dos anos anteriores, o horário de trabalho e a insegurança têm aumentado, juntamente com a dívida. A riqueza acumulada, mas em poucos bolsos, leva à desigualdade provavelmente recorde. Estes são, em grande parte, as consequências da financeirização da economia desde os anos 1970 e o correspondente esvaziamento da produção nacional. O que as pessoas vêem diante de seus olhos é que os banqueiros que são os principais responsáveis pela atual crise e que foram salvos da falência por parte do público estão agora revelando lucros recordes e bônus enormes, enquanto o desemprego oficial fica em cerca de 10%. Na indústria transformadora observamos níveis de depressão; um em cada seis, com bons empregos. Os cidadãos querem respostas, e não estão sendo dadas, com exceção de alguns atores que contam causos com alguma coerência interna, entendida somente suspendendo a descrença entrando em seu mundo peculiar de irracionalidade e engano. Ridicularizar as travessuras da Tea Party é um erro grave, eu acho. Seria muito mais adequado estudar o que está por trás dela, e nos perguntar por que as pessoas justamente irritadas estão sendo mobilizadas pela extrema direita e não por forças como as de minha infância, nos meus dias de formação pessoal, do CIO e outros ativismos construtivos.

Para citar apenas um exemplo do funcionamento da democracia realmente existente no mercado, as ações de Obama foram todas de foro de acordo com instituições financeiras, que ganharam tal posição dominante na economia que o lucro empresarial passou de alguns por cento nos anos 70 para quase 1/3 hoje. Elas preferiram Obama a McCain, grande parte o apoiando em sua eleição. Esperavam ser recompensados, e foram. Mas há alguns meses atrás, respondendo à crescente indignação pública, Obama começou a criticar os "banqueiros gananciosos" que haviam sido resgatados pelo público, e ainda propôs algumas medidas para coagí-los. A punição por seu desvio foi rápida. Os grandes bancos anunciaram que mudariam favoravelmente de financiamento para os republicanos, se Obama persistisse com sua retórica ofensiva.

Obama ouviu a mensagem. Alguns dias após, informou ao meio financista que os banqueiros estavam bem "caros". Destacou porém elogios especiais para os presidentes dos dois principais beneficiários dos encargos públicos, o JPMorgan Chase e Goldman Sachs, e assegurou ao mundo dos negócios "Eu, como a maioria do povo americano, não invejo as pessoas de sucesso ou riqueza" - tais como os bônus e lucros que estão enfurecendo o público. "Isso faz parte do sistema de mercado livre", continuou Obama, de um modo objetivo, diferente do conceito de "livre mercado" que é interpretado na doutrina teórica de Estado capitalista.

Não deve ser visto como um acontecimento insólito. O incorrigível radical Adam Smith, falando da Inglaterra, observou que os principais arquitetos do poder eram donos da sociedade de fato, no seu tempo comerciantes e fabricantes, e se certificavam de que a política iria assistir escrupulosamente os seus interesses mais "graves" mesmo sobre impacto no povo inglês, e pior, mesmo nas vítimas da "injustiça selvagem dos europeus" no exterior. Crimes britânicos na Índia foram a principal preocupação de um conservador à moda antiga dos valores morais, uma categoria que um Diógenes poderia procurar por hoje.

Em uma versão moderna e mais sofisticada da máxima de Smith, "teoria do investimento da política", o economista e cientista político Thomas Ferguson tem observado em eleições surgirem ocasiões nas quais grupos de financistas se aglutinam para investir no controle do Estado, selecionando políticos que serão arquitetos servindo aos seus interesses. Sendo atestada análise como um indicador muito seguro da política por longos períodos, não sendo porém surpreendente. As concentrações de poder econômico naturalmente procuram estender a sua influência sobre todo o processo político. Fenômeno extremo nos EUA, como mencionei.

Há fértil debate nestes dias sobre se ou quando, os EUA vão perder a sua posição dominante nos assuntos globais para China e Índia, as potências mundiais em ascensão. Há um elemento de verdade nessas lamentações. Mas, para além de equívocos sobre a dívida, déficits, e a real situação da China e da Índia, as discussões são baseadas em um grave equívoco sobre a natureza do poder e seu exercício. Na bolsa e no discurso público, é comum ocorrerem alguns dramaturgos nos assuntos internacionais comentando que os Estados perseguem um objetivo misterioso chamado "interesse nacional" - divorciado da distribuição interna de poder. Adam Smith tinha um olho mais aguçado, e suas banalidades radicais fornecem útil corretividade ao tema. Com isso em mente, podemos ver que existe realmente uma mudança de poder global, todavia daquele que ocupa o centro do palco: uma nova transferência da força de trabalho global para o capital transnacional, fortemente aumentado durante os anos neoliberais. O custo é substancial, incluindo as pessoas que trabalham nos EUA, famintos camponeses na Índia, e milhões de trabalhadores protestando na China, onde a participação do trabalho na renda nacional está diminuindo ainda mais rapidamente do que na maior parte do mundo.

O economista Martin Hart-Landsberg observa que a China desempenha um papel de liderança na mudança real de poder global, fazendo-se em grande parte uma fábrica de montagem de um sistema de produção regional. Japão, Taiwan e outras partes da Ásia mantém economias avançadas e componentes de exportação para a China, e fornecem a maior parte da tecnologia sofisticada. O trabalho chinês monta e exporta. Para ilustrar, um estudo da Fundação Sloan estima que para um ipod de $150 exportado da China, cerca de 3% do valor adicionado é chinês, mas é contado como das exportações chinesas. Muita preocupação foi despertada pelo crescente déficit comercial dos EUA com a China, mas menos notado é o fato de que o déficit comercial com Japão e resto da Ásia tem forte declínio em relação ao novo sistema de produção regional tomando forma. Uma reportagem do Wall Street Journal concluiu que, se os valores acrescentados fossem devidamente calculados, o déficit comercial EUA-China real cairia até 30%, enquanto o déficit comercial dos EUA com o Japão aumentaria 25%. Montadoras dos EUA estão seguindo o mesmo curso, fornecendo peças e componentes para a China para montagem e exportação, principalmente com retorno aos EUA. Para as instituições financeiras, gigantes do varejo, gestão das indústrias e setores estreitamente relacionados com este nexo de poder, tudo isso é celestial. Não para os trabalhadores americanos, mas como Smith apontou, seu destino não é a preocupação dos "principais arquitetos da política".

É verdade que não há nada de fundamentalmente novo no processo de desindustrialização. Proprietários e gerentes, naturalmente, procuram o menor custo de trabalho; esforços para fazer o contrário, famosos por Henry Ford, foram derrubados pela Justiça: agora é uma obrigação legal. Um dos meios de produção está se deslocando. Nos tempos anteriores a mudança fora principalmente interna, especialmente para os Estados do sul, onde o trabalho poderia ser mais duramente reprimido. Grandes corporações, como a empresa de aço dos EUA do santo filantropo Andrew Carnegie, também poderiam lucrar com a nova força de trabalho escrava criada pela criminalização da vida dos negros após o final da Reconstrução, em 1877, um componente essencial da revolução industrial americana, continuado até a Segunda Guerra Mundial. Processo que está sendo reproduzido em parte durante o recente período neoliberal, com a guerra às drogas utilizada como pretexto para conduzir a população supérflua, a maioria negra, de volta à prisão, fornecendo também uma nova oferta de trabalho profissional nas prisões estatais ou privadas, tanto mesmo e com violação das convenções internacionais de trabalho. Para muitos afro-americanos, já exportados para as colônias, a vida tinha pouco escapado dos títulos de escravidão, e às vezes era pior. Mais recentemente, a mudança é em grande parte internacional.

Voltando à acusação de "banqueiros gananciosos", na justiça, devemos admitir que eles têm uma defesa válida. Têm por tarefa aumentar a participação do lucro e do mercado, na verdade essa é a obrigação legal. Se não o fizerem, serão substituídos por alguém ou algo que o faça. Estes são os fatos institucionais, como são as ineficiências dos mercados inerentes que lhes obriga a ignorar o risco sistêmico: até a probabilidade de que as operações acabem por prejudicar a economia em geral. Eles sabem muito bem que estas políticas são susceptíveis por cotas da economia, mas estes custos externos, como são chamados, não são os seus negócios, e não poderiam ser, não porque sejam maus, mas pela lógica institucional. É também injusto acusá-los de "exuberância irracional", reconhecendo brevemente Alan Greenspan tratando da realidade durante o boom artificial tecnologia dos anos 90. Sua exuberância e tomada de riscos foram racionais, na certeza de que quando tudo desabasse, eles poderiam fugir para o abrigo do Estado-babá, agarrando seus exemplares de Hayek, Friedman e Rand. A apólice de seguros do governo é um dos muitos incentivos perversos que aumentam as ineficiências de mercados inerentes.

Tão logo, ignorar o risco sistêmico é uma propriedade inerente da lógica institucional e incentivos perversos são aplicações da máxima de Smith. Novamente, nenhuma grande novidade.

Após o último desastre ocorrido, foi concordado entre os principais economistas a necessidade de engendrar um "consenso" desenvolvido "sobre a necessidade de supervisão macroprudencial" dos mercados financeiros, isto é, "prestar atenção à estabilidade do sistema financeiro como um todo não apenas como partes individuais "(Barry Eichengreen, um dos mais respeitados analistas e historiadores do sistema financeiro). Dois proeminentes economistas internacionais acrescentam que "Há um reconhecimento crescente de que nosso sistema financeiro está executando um ciclo apocalíptico em suas falhas, contamos com o dinheiro e as políticas fiscais frouxas para socorrê-lo, ensinando ao setor financeiro: apostar alto para conseguir bons rendimentos, e não se preocupar com os custos - eles serão pagos pelos contribuintes "através de salvamentos e outros dispositivos, e do sistema financeiro", portanto, criando o mecanismo para ressuscitá-lo para jogar novamente - e para falhar de novo. O sistema é um "circuito destrutivo", nas palavras do funcionário do Banco da Inglaterra, responsável pela estabilidade financeira.

Basicamente a mesma lógica se aplica em outros lugares. Um ano atrás, o mundo empresarial reconheceu que as companhias de seguros e grandes empresas farmacêuticas, desafiando a vontade popular, conseguiram destruir a possibilidade de grandes reformas na área da saúde - um assunto muito sério, não só para as pessoas que sofrem com o sistema de saúde disfuncional, mas mesmo em estreitas motivações econômicas. Cerca de metade do déficit que somos instruídos a lamentar é atribuível a gastos militares sem precedentes, passando sob Obama, e a maioria do resto dos custos crescentes do sistema de cuidados de saúde privatizados praticamente não regulamentados, único no mundo industrial, também único em seus brindes para empresas farmacêuticas - por oposição a vontade de 85% apenas da população. Em agosto passado, a Business Week teve uma reportagem de capa comemorando a vitória da indústria de seguros de saúde. Naturalmente, nenhuma vitória é o suficiente, então eles persistiram na luta, ganhar mais, também contra a vontade da grande maioria do público, outra história interessante que eu vou ter que deixar de lado. Observando esta vitória, o American Petroleum Institute, apoiado pela Câmara de Comércio e outros lobistas de grandes negócios, anunciou que vai usar o modelo das campanhas da indústria da saúde para intensificar em esforços sua propaganda maciça de convencer o público a julgar preocupante o aquecimento global antropogênico. Isso tem sido feito com grande sucesso. Os executivos dedicados a esta tarefa sabem tão bem quanto o resto de nós que a farsa liberal é real, e as perspectivas sombrias. Mas estão cumprindo seu papel institucional. O destino da espécie é uma externalidade que devem ignorar, na medida em que sistemas de mercado prevalecem.

Uma das articulações mais claras e mais comoventes do humor público que eu vi foi escrita por Joseph Andrew Stack, que bateu seu pequeno avião em um prédio de escritórios em Austin, Texas, há algumas semanas, cometendo suicídio. Ele deixou um manifesto explicando suas ações. Foi principalmente ridicularizado, mas merece avaliação mais justa, eu acho.

Stack manifesta traços de sua história de vida e que o levou a este ato final desesperado. Na história ele começa ainda um estudante adolescente que vivia em uma ninharia em Harrisburg, perto do coração do que foi outrora um grande centro industrial. Sua vizinha era uma mulher de 80 anos, sobrevivendo de comida de gato, "a mulher", viúva de um trabalhador aposentado do aço. O marido dela tinha trabalhado toda a sua vida nas usinas de aço da Pensilvânia central, com promessas de grandes empresas e do sindicato que, por seus 30 anos de serviço, teria uma pensão e assistência médica para olhar para frente em sua aposentadoria. Ao invés disso ele foi um dos milhares que não ganhou nada, porque a gestão da fábrica feita por incompetentes e corruptos unidos (para não mencionar o governo) usurpou os fundos de pensão e roubou sua aposentadoria. Tudo que ela tinha era o seguro social para viver (citando); Stack poderia ter acrescentado que sempre há um esforço concertado e contínuo de super-ricos e seus aliados políticos por usurpar, mesmo que camuflado por motivos espúrios. Stack decidiu então que não podia confiar em um grande negócio e se estabelecer por conta própria, apenas para descobrir que ele não poderia confiar em um governo que não se preocupava com e se as pessoas gostam dele, mas apenas observando os ricos e privilegiados, ou confiar num sistema jurídico em que, em suas palavras, "existem duas interpretações para todas as leis, uma para os muito ricos e outra para o resto de nós". Ou um governo que nos deixa com "a brincadeira que chamamos de sistema médico americano, incluindo as empresas farmacêuticas e de seguros [que] estão matando dezenas de milhares de pessoas por ano", com cuidado racionado em grande parte por uma desnecessária riqueza. Tudo em uma ordem social em que "um punhado de bandidos e assaltantes pode cometer atrocidades impensáveis ... e quando é feita a hora do trem da alegria para a sua queda sob o peso de sua estupidez e avassaladora gula, a força total do governo federal não tem dificuldade em vir ao seu auxílio dentro de dias se não horas". E muito mais.

Stack diz-nos que o seu ato de desespero final foi um esforço para mostrar que existem pessoas dispostas a morrer por sua liberdade, na esperança de despertar nos outros o seu torpor. Não me surpreenderia que tivesse em mente a morte prematura do trabalhador de aço que lhe ensinou sobre o mundo real enquanto adolescente; que trabalhadores de aço literalmente cometem suicídio depois de terem sido descartados no lixo. Mas está longe de ser um caso isolado, podemos acrescentar o seu e muitos casos semelhantes ao pedágio colossal dos crimes institucionais do capitalismo de Estado.

Há estudos pungente da indignação e raiva dos que têm sido postos de lado, programas estaduais das empresas, de financeirização e desindustrialização que têm fechado fábricas e destruído famílias e comunidades. Eles revelam o sentimento de traição aguda por parte do povo trabalhador que acredita ter cumprido seu dever para com a sociedade em um pacto moral com empresas e governo, apenas para descobrir que tinham sido meros instrumentos de lucro e poder, a partir de obviedades que tinham sido cuidadosamente protegidas por doutrinas institucionais.

A leitura do Manifesto de Joe Stack, com muito gosto, fez-me recuperar memórias de infância, e muito mais que eu entendia na época. A República de Weimar foi o auge da civilização ocidental nas ciências e nas artes, também considerada modelo de democracia. Através dos anos 1920 os partidos tradicionais liberais e conservadores entraram em declínio inexorável, bem antes do processo ser intensificado pela Grande Depressão. A coalizão que elegeu o General Hindenburg em 1925 não foi muito diferente da base de massa que jogou Hitler ao poder oito anos depois, obrigando o aristocrático Hindenburg a selecionar como Chanceler o "pequeno cabo" que desprezava. No fim de 1928 os nazistas tinham menos de 3% dos votos. Dois anos depois, a mais respeitável mídia de Berlim lamentou a visão de muitos milhões neste "país altamente civilizado" que tinham "dado seu voto ao charlatanismo comum e oco, e mais cruel." O público estava ficando aborrecido com a disputa política incessante de Weimar, a serviço dos partidos tradicionais aos interesses poderosos e sua incapacidade de lidar com queixas populares. Eles foram atraídos para as forças dedicadas a defender a grandeza da nação em defensa contra ameaças inventadas em um estado revitalizada, armado e unificado, marchando para um futuro glorioso, liderada pela figura carismática que estava realizando "a vontade da Providência eterna, O Criador do Universo ", como discursava para as massas hipnotizadas. Em maio de 1933, os nazistas haviam destruído em grande parte não só os partidos dominantes tradicionais, mas mesmo os grandes partidos da classe trabalhadora, social-democratas e comunistas, juntamente com suas associações muito abastadas. Os nazistas alardoaram o MayDay de 1933 como um feriado dos trabalhadores, algo que os partidos de esquerda nunca foram capazes realizar. Muitos trabalhadores participaram nas manifestações patrióticas enormes, com mais de um milhão de pessoas no coração da Berlim vermelha, juntando-se aos agricultores, artesãos, comerciantes, forças paramilitares, organizações cristãs, clubes esportivos, junto ao resto da coalizão, que foi tomando forma como um centro entrando em colapso. Até o início da guerra, talvez 90% dos alemães estavam marchando com os camisas pardas.

Como eu mencionei, eu sou antigo apenas o suficiente para lembrar aqueles dias de fria e ameaçadora ascendência alemã de decência à barbárie nazi, para usar as palavras do ilustre estudioso de história alemão Fritz Stern. Ele nos diz que tem o futuro dos Estados Unidos em mente em certas opiniões como "um processo histórico em que o ressentimento contra um mundo desencantado secular encontrará libertação na fuga e em êxtase de irracionalidade".

O mundo é demasiado complexo para a história se repetir, mas há, no entanto, lições para se manter em mente. Não há escassez de tarefas para aqueles que escolhem a vocação de intelectual crítico, seja qual for a sua estância na vida. Podem procurar e varrer as brumas da ilusão cuidadosamente planejadas e revelar a realidade nua e crua. Podem estar diretamente envolvidos nas lutas populares, ajudando a organizar os inúmeros Joe Stacks, que estão destruindo a si mesmos, e talvez o mundo, e se juntar a eles na liderança de um modo como caminhar em direção a um futuro melhor.


chomsky.info

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Transdemocratam - I

Em um primeiro momento, é preciso compreender uma evidência: A Democracia é um valor temporal da atualidade, logo, Universal, cambiado por todas as moedas.

Hugo Chavéz acredita fazer democracia social, os americanos acreditam fazer democracia liberal, os europeus, parlamentarismo democrata. Iranianos? Democracia. Democracia nas Áfricas, democracia aqui, democracia lá... Singapura se diz uma república! a China é um país socialista de mercado, e o Brasil é sem dúvida muito abençoado pela herança das Diretas Já: Voto Obrigatório (Deus, Olorum e Tupã me livrem de ser irônico). Sem dúvida vivemos no melhor dos mundos possíveis, como já dizia Pangloss.

Deixando a ironia, abordemos o tema do longo ensaio, a Democracia. Por início - Genesis. O início: Como nasceu a democracia?

A melhor definição é tardia, digo; o origem primeva do consenso, proletado, entre partes em pé de igualdade, por afirmação: WITAN, ou, no inglês antigo WITENAGEMOT. Wita/wise/sábio + (ge)mot/a meeting/em reunião, reunidos...: Para todos os efeitos, Conselho dos sábios (No idioma português, traduzindo a tradição germânica, utilizamos a palavra Dieta*). Reunião entre os principais senhores de guerra, lords, senhores feudais, em preparativo para uma ação de larga escala bélica. A origem do Parlamento.

Na Ilíada é possível observar um witan dos mortais, e um dos imortais. Entre os mortais, liderado pelo rei Agamemnon de Micenas, filho de Atreu, chefe de todos os aques. Entre os imortais, liderado por Crônida Zeus (Zeus, filho de Cronos, o velho, deus dos deuses).

Remetemos então aos primórdios da espécie, aos grupos de caça, primeiras divisões de trabalho...


Mas, sim, nada disso é propriamente a Democracia. Não a Democracia tal como pensamos ou tentamos fazer. Pensamos em Democracia enquanto um estado de igualdade cívica, direitos iguais para todos em pé de igualdade. Sufrágio Universal; porém iniciado propriamente a apenas 50 anos em todo o mundo, e 20 aqui no Brasil. Reclamado nos últimos 200 anos. Louvamos o sonho dos gregos...

Dos gregos? Conhecemos mesmo o pensamento dos gregos (Paidéia)?

Quem era aquele grego que chorava tragédias, ria comédias, debatia política, navegação e filosofia na esquina? Filho tardio de velhas famílias tradicionais e aristocratas decadentes, cada um sem força para suplantar os outros. Mas diriam talvez: "E Péricles?!" Um, apenas, e símbolo de tal; o bom ditador. Não, nada de igualdade total e alegria plena. Escravidão, elitismo ao extremo, e segregação civil. Uma mulher bêbada, imaginemos, punível pela pena capital! E a homossexualidade, não uma possibilidade, mas vício juvenil...


Concordemos porém. Somos mais igualitários, mesmo com todos os "poréns". Somos mais moles, gordos e lentos também.

As Forças Terríveis

"Sinto-me porém, esmagado. Forças terríveis se levantam contra mim e me caluniam ou difamam".

Jânio Quadros


Levantem-se todos os conspiradores, todos os venenos pelas batinas do Cardeal, a mesa posta de reis e ministros! Todos os punhais, todas as manobras, os laços de mentiras e alcovas, os bastidores do poder, os espiões doutores, e o tacanho regicida. O 5 de Novembro, o 11 de Setembro, o 10 de Maio! Os jornais anunciam todo dia os rios de barbárie e caos que inundam nossas cidades, imensas, umas nas outras, enquanto o cidadão de bem se esforça por andar na ciclovia, temendo Deus e os homens (mais os homens).

Forçoso é gostar de política, ela nos contorna, infesta, sodomiza alguns. Afeiçoar-se; sendo justo. Política é a contingência do aglomerado de todos os nossos apetites, vontades, vícios, medos, desejos, um enleio fingido de acordo, contrato, uma utopia muito viva e concreta cheia de braços. A Política é panegírico da humanidade. Tudo que é, de mais humano, é por efeito, político.

Falar de política. Coisa política. Qualquer pretensão de partidarismo é miopia do amigo leitor, desgosto todos e de todos. Aprimorar, digo, enaltecer alguns momentos de descarga e debalde. É todo o meu objetivo, todo o meu objetivo.

Um panegírico, diriam, um panegírico...