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Pederneira. Substância muito usada no fabrico de corações humanos. (Ambrose Bierce)

sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Do gênio da espécie

Do "gênio da espécie". - O problema da consciência (ou, mais precisamente, do tornar-se consciente) só nos aparece quando começamos a entender em que medida poderíamos passar sem ela: e agora a fisiologia e o estudo dos animais nos colocam neste começo de entendimento (necessitaram de dois séculos, portanto, para alcançar a premonitória suspeita de Leibniz). Pois nós poderíamos pensar, sentir, querer, recordar; poderíamos igualmente "agir" em todo sentido da palavra; e, não obstante, nada disso precisaria nos "entrar na consciência" (como se diz figuradamente).

A vida inteira seria possível sem que, por assim dizer, ela se olhasse no espelho: tal como, de fato, ainda hoje a parte preponderante da vida nos ocorre sem esse espelhamento - também da nossa vida pensante, sensível e querente, por mais ofensivo que isto soe para um filósofo mais velho.

Para que então consciência, quando no essencial é supérflua?

Bem, se querem dar ouvidos à minha resposta a essa pergunta e à sua conjectura talvez extravagante, parece-me que a sutileza e a força da consciência estão sempre relacionadas à capacidade de comunicação de uma pessoa (ou animal), e a capacidade de comunicação, por sua vez, à necessidade de comunicação: mas não, entenda-se, que precisamente o indivíduo mesmo, que é mestre justamente em comunicar e tornar compreensíveis sus necessidades, também seja aquele que em suas necessidades mais tivesse recorrer aos outros.

Parece-me que é assim no tocante a raças e correntes de gerações: onde a necessidade, a indigência, por muito tempo obrigou os homens a se comunicarem, a compreenderem uns aos outros de forma rápida e sutil, há enfim um excesso dessa virtude e arte da comunicação, como uma fortuna (92) que gradualmente foi juntada e espera um herdeiro que prodigamente a esbanje (- os chamados artistas são esses herdeiros, assim como os oradores, pregadores, escritores, todos eles pessoas que sempre vêm no final de uma longa cadeia, "frutos tardios", na melhor acepção do termo, e, como foi dito, por natureza esbanjadores).

Supondo que esta observação seja correta, posso apresentar a conjectura de que a consciência desenvolveu-se apenas sob a pressão da necessidade de comunicação - de que desde o início foi necessária e útil apenas entre uma pessoa e outra (entre a que comanda e a que obedece, em especial), e também se desenvolveu apenas em proporção ao grau dessa utilidade. Consciência é, na realidade, apenas uma rede de ligação entre as pessoas, - apenas como tal ela teve que se desenvolver: um ser solitário e predatório não necessitaria dela.

O fato de nossas ações, pensamentos, sentimentos, mesmo movimentos nos chegaram à consciência - ao menos parte deles -, é conseqüência de uma terrível obrigação que por longuíssimo tempo governou o ser humano: ele precisava, sendo o animal mais ameaçado, de ajuda, proteção, precisava de seus iguais, tinha de saber exprimir seu apuro e fazer-se compreensível - e para isto tudo ele necessitava antes de "consciência", isto é, "saber" o que lhe faltava, "saber" como se sentia, "saber" o que pensava.

Pois, dizendo-o mais uma vez: o ser humano, como toda criatura viva, pensa continuamente, mas não o sabe; o pensar que se torna consciente é apenas a parte menor; a mais superficial, a pior, digamos: - pois apenas esse pensar consciente ocorre em palavras, ou seja, em signos de comunicação, com o que se revela a origem da própria consciência.

Em suma o desenvolvimento da linguagem e o desenvolvimento da consciência (não da razão, as apenas do tomar-consciência-de-si da razão) andam lado a lado.

Acrescente-se que não só a linguagem serve de ponte entre um ser humano e outro, mas também o olhar, o toque, o gesto; o tomar-consciência das impressões de nossos sentidos em nós, a capacidade de fixá-las e como que situá-las fora de nós, cresceu na medida em que aumentou a necessidade de transmiti-las a outros por meio de signos.

O homem inventor de signos é, ao mesmo tempo, o homem cada vez mais consciente de si;. Apenas como animal, social o homem aprendeu a tomar consciência de si - ele o faz ainda, ele o faz cada vez mais.

- Meu pensamento, como se vê, é que a consciência não faz parte realmente da existência individual do ser humano, mas antes daquilo que nele é a natureza comunitária e gregária; (93) que, em conseqüência, apenas em ligação com a utilidade comunitária e gregária ela se desenvolveu sutilmente, e que, portanto, cada um de nós, com toda a vontade que tenha de entender a si próprio de maneira mais individual possível, de "conhecer a si mesmo", sempre traz à consciência justamente o que não possui de individual, o que nele é "médio" - que nosso pensamento mesmo é continuamente suplantado, digamos, pelo caráter da consciência - pelo "gênio da espécie" que nela domina - e traduzido de volta para a perspectiva gregária.

Todas as nossas ações , no fundo, são pessoais de maneira incomparável, únicas, ilimitadamente individuais, não há dúvida; mas, tão logo as traduzimos para a consciência, não aparecem mais sê-lo... Este é o verdadeiro fenomenalismo e perspectivismo, como eu o entendo: a natureza da consciência animal ocasiona que o mundo de que podemos nos tornar conscientes seja só um mundo generalizado, vulgarizado (94) - que tudo o que se torna consciente por isso mesmo torna-se raso, ralo, relativamente tolo, geral, signo, marca de rebanho, que a todo tornar-se consciente está relacionada uma grande, radical corrupção, falsificação, superficialização e generalização.

Afinal, a consciência crescente é um perigo; e quem vive entre os mais conscientes europeus sabe até que é uma doença.

Não é, como se nota, a oposição entre sujeito e objeto que aqui em interessa: essa distinção deixo para os teóricos do conhecimento que se enredaram nas malhas da gramática (a metafísica do povo). E menos ainda é a oposição entre fenômeno e "coisa em si": pois estamos longe de "conhecer" o suficiente para poder assim separar. Não temos nenhum órgão para o conhecer; para a "verdade": nós "sabemos" (ou cremos, ou imaginamos) exatamente tanto quanto pode ser útil ao interesse da grege humana, da espécie: e mesmo o que aqui se chama "utilidade' é, afinal, apenas uma crença, uma imaginação e, talvez, precisamente a fatídica estupidez da qual um dia pereceremos."



Aforismo 354, A Gaia Ciência, Friedrich Nietzsche.
Livro V - Gaia Ciência, Friedrich Nietzsche, pág. 247-250,
Companhia das Letras, ano 2001, tradução,
notas e posfácio de Paulo César de Souza.

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