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Pederneira. Substância muito usada no fabrico de corações humanos. (Ambrose Bierce)

terça-feira, 29 de março de 2011

O Espírito de Osíris


Seria o velho berbére, a herança de Barca? A Força da Ancestral África?

Seriam os velhos faraós ressuscitados? Os Homens-Deuses imortalizados?

Seria o nacionalismo islão clamando seus fiéis? Santa Guerra e seus mártires?

*

É a união do desejo de liberdade com o sentido de irmandade.

É a cor bronze de muitos na força de um brado só.

É o Espírito de Osíris em tiros, bandanas e flamas.

*

Força e luta;
Poder,
Vitória.

Ainda mais ácido...

"All Alone"... Um blog é mais um apito na feira borbulhante da Internet. "Seus amiguinhos comentaram seus textos; lindo, charmoso, como uma multidão de outros subterrâneos simpósios efêmeros, na vastidão silenciosa de nomes que passam". É bonito - assumo - veja, é até louvável, mas como também vê; não é lá tão diferente. Gostamos de pensar fazer diferença, não fazemos tanta diferença, pensamos fazer. É uma certa injustiça necessária (são tantas), e bem o que pode ser. Mas, como também vê; não é lá tão diferente.

Você pode não estar gostando muito do tom... E vai piorar muito, camarada. Convenhamos, ficar aqui lendo texto de blog não é crescimento de vida, ou é? Ou, ou, talvez o amigo leitor seja um respeitável medalhão. Meu camarada, Goethe hoje é tão papa de verme quanto eu serei em algum tempo (pouco), e VOCÊ. Quero dizer; acreditamos importância e tomamos tempos para expressar nossas ideias (geralmente inúteis) e lemos as coisas dos nossos amigos (qualidade). Pois bem, mas como também vê; não é lá tão diferente. É melhor rir, meu camarada, essa merda só faz piorar.

Pessimistas ateus, niilistas, céticos profundos, humorados, condenados, bastardos... Mas você é um sujeito de bem e está aqui? Suportando o cheiro de urina das paredes, pode até se divertir. Meu objetivo? Justificar a completa falta de sentido da vida.

Digamos assim, é um livro de autoprejuízo*.


Compêndio de ensaios mórbidos sobre a nossa tolerância de falhas.




Deus está morto, tudo é permitido".


http://daassemblia.blogspot.com/

sexta-feira, 25 de março de 2011

O Jogador


Há indivíduos que passam e ficam como se dados e arremessados. Percorrem a vida em um mesmo estalo. São a tirania da ação sobre suas consequências. Ora conquistadores, ora presidiários; os autênticos jogadores.

(...)

Vencer ou perder, ser ou não ter, esperar ou morrer. Resultantes inquebrantáveis e um jogo complexo demais para se malograr. Isento sempre de atalhos. Todo feito em curvas. Todo indivíduo transmuta uma enorme e limitada engenharia de relações. Interpretações contraditórias e múltiplas que por fim se coadunam. Dificilmente percebido movimento de peças.

Todas as matrizes são arbitrárias. Escapam de julgamentos quaisquer - aprofundadas em causas e efeitos. circunstância de nascimento, genética, necessidades, inimigos naturais, tradição, tudo que rodeia disputa aflige exulta o simulacro da personalidade, asilo tacanho. Aceitar, negar, tributar. O divisível nos confronta.

- Sua música é o ruído branco.

Pó de velhos ossos; hoje, enfim, é mero e preponderantemente humano = "Selva de Pedra". A Natureza vez por outra agita e quebranta essa esquizofrenia. É preciso ou recomendável labutar nele, conduzindo o mais possível na mão o desejo e na impossibilidade palpite de esperar boa ocasião.

- Lá podemos controlar instinto? Influir nas malhas de tantos ímpetos? Não é tudo passado do idêntico futuro?

Cegueiras que vale esquecer, meu amigo. E se já não pode esquecer/

- Como já não posso deixar de jogar

/então que se esqueça de tudo!
Podendo declinar ou tentar a fuga.

- No mais é lucidez e senso de oportunidade

E assim ainda falta!



*



Quando abandonei o curso de Letras pelas emoções das cartas, estérico e febril, das especulações terríveis, abandonei a vida de restrições - Odiada! Impossível! - Mergulho de longa torrente de riscos que me colocaram aqui [Em uma ante-sala de um escritório de agiotismo] Com a vida em risco e sem truques. - E por diabos não me chamam logo? Sei que na próxima, na próxima - Eu poderia escolher, dizem. "Fortuna", "azar", "destino", "vontade"; "livre-arbítrio"; punição e recompensa. Palavras que só fazem dilatar minha ansiedade... Sorte no Jogo, sorte... É a minha vez.

segunda-feira, 21 de março de 2011

Instinto de Nacionalidade - Por Machado de Assis

QUEM EXAMINA a atual literatura brasileira reconhece-lhe logo, como primeiro traço, certo instinto de nacionalidade. Poesia, romance, todas as formas literárias do pensamento buscam vestir-se com as cores do país, e não há negar que semelhante preocupação é sintoma de vitalidade e abono de futuro. As tradições de Gonçalves Dias, Porto Alegre e Magalhães são assim continuadas pela geração já feita e pela que ainda agora madruga, como aqueles continuaram as de José Basílio da Gama e Santa Rita Durão. Escusado é dizer a vantagem deste universal acordo. Interrogando a vida brasileira e a natureza americana, prosadores e poetas acharão ali farto manancial de inspiração e irão dando fisionomia própria ao pensamento nacional. Esta outra independência não tem Sete de Setembro nem campo de Ipiranga; não se fará num dia, mas pausadamente, para sair mais duradoura; não será obra de uma geração nem duas; muitas trabalharão para ela até perfazê-la de todo.

Sente-se aquele instinto até nas manifestações da opinião, aliás mal formada ainda, restrita em extremo, pouco solícita, e ainda menos apaixonada nestas questões de poesia e literatura. Há nela um instinto que leva a aplaudir principalmente as obras que trazem os toques nacionais. A juventude literária, sobretudo, faz deste ponto uma questão de legítimo amor-próprio. Nem toda ela terá meditado os poemas de Uruguai e Caramuru com aquela atenção que tais obras estão pedindo; mas os nomes de Basílio da Gama e Durão são citados e amados, como precursores da poesia brasileira. A razão é que eles buscaram em roda de si os elementos de uma poesia nova, e deram os primeiros traços de nossa fisionomia literária, enquanto que outros Gonzaga por exemplo, respirando aliás os ares da pátria, não souberam desligar-se das faixas da Arcádia nem dos preceitos do tempo. Admira-se-lhes o talento, mas não se lhes perdoa o cajado e a pastora, e nisto há mais erro que acerto.

Dado que as condições deste escrito o permitissem, não tomaria eu sobre mim a defesa do mau gosto dos poetas arcádicos nem o fatal estrago que essa escola produziu nas literaturas portuguesa e brasileira. Não me parece, todavia, justa a censura aos nossos poetas coloniais, iscados daquele mal; nem igualmente justa a de não haverem trabalhado para a independência literária, quando a independência política jazia ainda no ventre do futuro, e mais que tudo quando entre a metrópole e a colônia criara a história a homogeneidade das tradições, dos costumes e da educação. As mesmas obras de Basílio da Gama e Durão quiseram antes ostentar certa cor local do que tornar independente a literatura brasileira, literatura que não existe ainda, que mal poderá ir alvorecendo agora.

Reconhecido o instinto de nacionalidade que se manifesta nas obras destes últimos tempos, conviria examinar se possuímos todas as condições e motivos históricos de uma nacionalidade literária, esta investigação (ponto de divergência entre literatos), além de superior às minhas forças, daria em resultado levar-me longe dos limites deste escrito. Meu principal objeto é atestar o fato atual; ora, o fato é o instinto de que falei, o geral desejo de criar uma literatura mais independente.

A aparição de Gonçalves Dias chamou a atenção das musas brasileiras para a história e os costumes indianos. Os Timbiras, I-Juca Pirama, Tabira e outros poemas do egrégio poeta acenderam as imaginações; a vida das tribos, vencidas há muito pela civilização, foi estudada nas memórias que nos deixaram os cronistas, e interrogadas dos poetas, tirando-lhes todos alguma coisa, qual um idílio, qual um canto épico.

Houve depois uma espécie de reação. Entrou a prevalecer a opinião de que não estava toda a poesia nos costumes semibárbaros anteriores à nossa civilização, o que era verdade, — e não tardou o conceito de que nada tinha a poesia com a existência da raça extinta, tão diferente da raça triunfante, — o que parece um erro.

É certo que a civilização brasileira não está ligada ao elemento indiano, nem dele recebeu influxo algum; e isto basta para não ir buscar entre as tribos vencidas os títulos da nossa personalidade literária. Mas se isto é verdade, não é menos certo que tudo é matéria de poesia, uma vez que traga as condições do belo ou os elementos de que ele se compõe. Os que, como o Sr. Varnhagen, negam tudo aos primeiros povos deste país, esses podem logicamente excluí-los da poesia contemporânea. Parece-me, entretanto, que, depois das memórias que a este respeito escreveram os Srs. Magalhães e Gonçalves Dias, não é lícito arredar o elemento indiano da nossa aplicação intelectual. Erro seria constituí-lo um exclusivo patrimônio da literatura brasileira; erro igual fora certamente a sua absoluta exclusão As tribos indígenas, cujos usos e costumes João Francisco Lisboa cotejava com o livro de Tácito e os achava tão semelhantes aos dos antigos germanos, desapareceram, é certo, da região que por tanto tempo fora sua; mas a raça dominadora que as freqüentou colheu informações preciosas e nô-las transmitiu como verdadeiros elementos poéticos. A piedade, a minguarem outros argumentos de maior valia, devera ao menos inclinar a imaginação dos poetas para os povos que primeiro beberam os ares destas regiões, consorciando na literatura os que a fatalidade da história divorciou.

Esta é hoje a opinião triunfante. Ou já nos costumes puramente indianos. tais quais os vemos n'Os Timbiras, de Gonçalves Dias, ou já na luta do elemento bárbaro com o civilizado, tem a imaginação literária do nosso tempo ido buscar alguns quadros de singular efeito dos quais citarei, por exemplo, a Iracema, do Sr. J. Alencar, uma das primeiras obras desse fecundo e brilhante escritor.

Compreendendo que não está na vida indiana todo o patrimônio da literatura brasileira, mas apenas um legado, tão brasileiro como universal, não se limitam os nossos escritores a essa só fonte de inspiração. Os costumes civilizados, ou já do tempo colonial, ou já do tempo de hoje, igualmente oferecem à imaginação boa e larga matéria de estudo. Não menos que eles, os convida a natureza americana cuja magnificência e esplendor naturalmente desafiam a poetas é prosadores. O romance, sobretudo, apoderou-se de todos esses elementos de invenção, a que devemos; entre outros, os livros dos Srs. Bernardo Guimarães, que brilhante e ingenuamente nos pinta os costumes da região em que nasceu, J. de Alencar, Macedo, Sílvio Dinarte (Escragnolle Taunay), Franklin Távora, e alguns mais.

Devo acrescentar que neste ponto manifesta-se às vezes uma opinião, que tenho por errônea: é a que só reconhece espírito nacional nas obras que tratam de assunto local, doutrina que, a ser exata, limitaria muito os cabedais da nossa literatura. Gonçalves Dias por exemplo, com poesias próprias seria admitido no panteão nacional; se excetuarmos Os Timbiras, os outros poemas americanos, e certo número de composições, pertencem os seus verses pelo assunto a toda a mais humanidade, cujas aspirações, entusiasmo, fraquezas e dores geralmente cantam; e excluo daí as belas Sextilhas de Frei Antão, que essas pertencem unicamente à literatura portuguesa, não só pelo assunto que o poeta extraiu dos historiadores lusitanos, mas até pelo estilo que ele habilmente fez antiquado. O mesmo acontece com os seus dramas, nenhum dos quais tem por teatro o Brasil. Iria longe se tivesse de citar outros exemplos de casa, e não acabaria se fosse necessário recorrer aos estranhos. Mas, pois que isto vai ser impresso em terra americana e inglesa, perguntarei simplesmente se o autor do Song of Hiawatha não é o mesmo autor da Golden Legend, que nada tem com a terra que o viu nascer, e cujo cantor admirável é; e perguntarei mais se o Hamlet, o Otelo, o Júlio César, a Julieta e Romeu têm alguma coisa com a história inglesa nem com o território britânico, e se, entretanto, Shakespeare não é, além de um gênio universal, um poeta essencialmente inglês.

Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região, mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam. O que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço. Um notável crítico da França, analisando há tempos um escritor escocês, Masson, com muito acerto dizia que do mesmo modo que se podia ser bretão sem falar sempre de tojo, assim Masson era bem escocês, sem dizer palavra do cardo, e explicava o dito acrescentando que havia nele um scotticismo interior, diverso e melhor do que se fora apenas superficial.

Estes e outros pontos cumpria à crítica estabelecê-los, se tivéssemos uma crítica doutrinária, ampla, elevada, correspondente ao que ela é em outros países. Não a temos. Há e tem havido escritos que tal nome merecem, mas raros, a espaços, sem a influência quotidiana e profunda que deveram exercer. A falta de uma crítica assim é um dos maiores males de que padece a nossa literatura; é mister que a análise corrija ou anime a invenção, que os pontos de doutrina e de história se investiguem, que as belezas se estudem, que os senões se apontem, que o gosto se apure e eduque, e se desenvolva e caminhe aos altos destinos que a esperam.



O ROMANCE

De todas as formas várias as mais cultivadas atualmente no Brasil são o romance e a poesia lírica; a mais apreciada é o romance, como aliás acontece em toda a parte, creio eu. São fáceis de perceber as causas desta preferência da opinião, e por isso não me demoro em apontá-las. Não se fazem aqui (falo sempre genericamente) livros de filosofia, de lingüística, de crítica histórica, de alta política, e outros assim, que em alheios países acham fácil acolhimento e boa extração; raras são aqui essas obras e escasso o mercado delas. O romance pode-se dizer que domina quase exclusivamente. Não há nisto motivo de admiração nem de censura, tratando-se de um país que apenas entra na primeira mocidade, e esta ainda não nutrida de sólidos estudos. Isto não é desmerecer o romance, obra d'arte como qualquer outra, e que exige da parte do escritor qualidades de boa nota.

Aqui o romance, como tive ocasião de dizer, busca sempre a cor local. A substância, não menos que os acessórios, reproduzem geralmente a vida brasileira em seus diferentes aspectos e situações. Naturalmente os costumes do interior são os que conservam melhor a tradição nacional; os da capital do país, e em parte, os de alguma cidades, muito mais chegados à influência européia, trazem já uma feição mista e ademanes diferentes. Por outro lado, penetrando no tempo colonial, vamos achar uma sociedade diferente, e dos livros em que ela é tratada, alguns há de mérito real.

Não faltam a alguns de nossos romancistas qualidades de observação e de análise, e um estrangeiro não familiar com os nossos costumes achará muita pagina instrutiva. Do romance puramente de análise, raríssimo exemplar temos, ou porque a nossa índole não nos chame para aí, ou porque seja esta casta de obras ainda incompatível com a nossa adolescência literária.

O romance brasileiro recomenda-se especialmente pelos toques do sentimento, quadros da natureza e de costumes, e certa viveza de estilo mui adequada ao espírito do nosso povo. Há em verdade ocasiões em que essas qualidades parecem sair da sua medida natural, mas em regra conservam-se estremes de censura, vindo a sair muita coisa interessante, muita realmente bela. O espetáculo da natureza, quando o assunto o pede, ocupa notável lugar no romance, e dá páginas animadas e pitorescas, e não as cito por me não divertir do objeto exclusivo deste escrito, que é indicar as excelências e os defeitos do conjunto, sem me demorar em pormenores. Há boas páginas, como digo, e creio até que um grande amor a este recurso da descrição, excelente, sem dúvida, mas (como dizem os mestres) de mediano efeito, se não avultam no escritor outras qualidades essenciais.

Pelo que respeita à análise de paixões e caracteres são muito menos comuns os exemplos que podem satisfazer à crítica; alguns há, porém, de merecimento incontestável. Esta é, na verdade, uma das partes mais difíceis do romance, e ao mesmo tempo das mais superiores. Naturalmente exige da parte do escritor dotes não vulgares de observação, que, ainda em literaturas mais adiantadas, não andam a rodo nem são a partilha do maior número.

As tendências morais do romance brasileiro são geralmente boas. Nem todos eles serão de princípio a fim irrepreensíveis; alguma coisa haverá que uma crítica austera poderia apontar e corrigir. Mas o tom geral é bom. Os livros de certa escola francesa, ainda que muito lidos entre nós, não contaminaram a literatura brasileira, nem sinto nela tendências para adotar as suas doutrinas, o que é já notável mérito. As obras de que falo, foram aqui bem-vindas e festejadas, como hóspedes, mas não se aliaram à família nem tomaram o governo da casa Os nomes que principalmente seduzem a nossa mocidade são os do período romântico, os escritores que se vão buscar para fazer comparações com os nossos, — porque há aqui muito amor a essas comparações — são ainda aqueles com que o nosso espírito se educou, os Vítor Hugos, os Gautiers, os Mussets, os Gozlans, os Nervals.

Isento por esse lado o romance brasileiro, não menos o está de tendências políticas, e geralmente de todas as questões sociais, — o que não digo por fazer elogio, nem ainda censura, mas unicamente para atestar o fato. Esta casta de obras, conserva-se aqui no puro domínio de imaginação, desinteressada dos problemas do dia e do século, alheia às crises sociais e filosóficas. Seus principais elementos são, como disse, a pintura dos costumes, e luta das paixões, os quadros da natureza, alguma vez o estudo dos sentimentos e dos caracteres; com esses elementos, que são fecundíssimos, possuímos já uma galeria numerosa e a muitos respeitos notável.

No gênero dos contos, à maneira de Henri Murger, ou à de Trueba, ou à de Ch. Dickens, que tão diversos são entre si, têm havido tentativas mais ou menos felizes, porém raras, cumprindo citar, entre outros, o nome do Sr. Luís Guimarães Júnior, igualmente folhetinista elegante e jovial. É gênero difícil, a despeito da sua aparente facilidade, e creio que essa mesma aparência lhe faz mal, afastando-se dele os escritores, e não lhe dando, penso eu, o público toda a atenção de que ele é muitas vezes credor.

Em resumo, o romance, forma extremamente apreciada e já cultivada com alguma extensão, é um dos títulos da presente geração literária. Nem todos os livros, repito, deixam de se prestar a uma crítica minuciosa e severa, e se a houvéssemos em condições regulares creio que os defeitos se corrigiriam, e as boas qualidades adquiririam maior realce. Há geralmente viva imaginação, instinto do belo, ingênua admiração da natureza, amor às coisas pátrias, e além de tudo isto agudeza e observação. Boa e fecunda terra, já deu frutos excelentes e os há de dar em muito maior escala.



A POESIA

A ação de crítica seria sobretudo eficaz em relação à poesia. Dos poetas que apareceram no decênio de 1850 a 1860, uns levou-os a morte ainda na flor dos anos, como Álvares de Azevedo, Junqueira Freire, Casimiro de Abreu, cujos nomes excitam na nossa mocidade legítimo e sincero entusiasmo, e bem assim outros de não menor porte. Os que sobreviveram calaram as liras; e se uns voltaram as suas atenções para outro gênero literário, como Bernardo Guimarães, outros vivem dos louros colhidos, se é que não preparam obras de maior tomo, como se diz de Varela, poeta que já pertence ao decênio de 1860 a 1870. Neste último prazo outras vocações apareceram e numerosas, e basta citar um Crespo, um Serra, um Trajano, um Gentil-Homem de Almeida Braga, um Castro Alves, um Luís Guimarães, um Rosendo Moniz, um Carlos Ferreira, um Lúcio de Mendonça, e tantos mais, para mostrar que a poesia contemporânea pode dar muita coisa; se algum destes, como Castro Alves, pertence à eternidade, seus versos podem servir e servem de incentivo às vocações nascentes.

Competindo-me dizer o que acho da atual poesia, atenho-me só aos poetas de recentíssima data, melhor direi a uma escola agora dominante, cujos defeitos me parecem graves, cujos dotes — valiosos e que poderá dar muito de si, no caso de adotar a necessária emenda.

Não faltam à nossa atual poesia fogo nem estro. Os versos publicados são geralmente ardentes e trazem o cunho da inspiração. Não insisto na cor local; como acima disse, todas as formas a revelam com mais ou menos brilhante resultado, bastando-me citar neste caso as outras duas recentes obras, as Miniaturas de Gonçalves Crespo e os Quadros de J. Serra, versos estremados dos defeitos que vou assinalar. Acrescentarei que também não falta à poesia atual o sentimento da harmonia exterior. Que precisa ela então? Em que peca a geração presente? Falta-lhe um pouco mais de correção e gosto, peca na intrepidez às vezes da expressão, na impropriedade das imagens na obscuridade do pensamento. A imaginação, que há deveras, não raro desvaira e se perde, chegando à obscuridade, à hipérbole, quando apenas buscava a novidade e a grandeza. Isto na alta poesia lírica, — na ode, diria eu, se ainda subsistisse a antiga poética; na poesia íntima e elegíaca encontram-se os mesmos defeitos, e mais um amaneirado no dizer e no sentir, o que tudo mostra na poesia contemporânea grave doença, que é força combater.

Bem sei que as cenas majestosas da natureza americana exigem do poeta imagens e expressões adequadas. O condor que rompe dos Andes, o pampeiro que varre os campos do Sul, os grandes rios, a mata virgem com todas as suas magnificências de vegetação, — não há dúvida que são painéis que desafiam o estro, mas, por isso mesmo que são grandes, devem ser trazidos com oportunidade e expressos com simplicidade. Ambas essas condições faltam à poesia contemporânea, e não é que escasseiem modelos, que aí estão, para só citar três nomes, os versos de Bernardo Guimarães, Varela e Álvares de Azevedo. Um único exemplo bastará para mostrar que a oportunidade e a simplicidade são cabais para reproduzir uma grande imagem ou exprimir uma grande idéia. N'Os Timbiras, há uma passagem em que o velho Ogib ouve censurarem-lhe o filho, porque se afasta dos outros guerreiros e vive só. A fala do ancião começa com estes primorosos versos:

São torpes os anuns, que em bandos folgam.
São maus os caititus que em varas pascem:
Somente o sabiá geme sozinho,
E sozinho o condor aos céus remonta.

Nada mais oportuno nem mais singelo do que isto. A escola a que aludo não exprimiria a idéia com tão simples meios, e faria mal, porque o sublime é simples. Fora para desejar que ela versasse e meditasse longamente estes e outros modelos que a literatura brasileira lhe oferece. Certo, não lhe falta, como disse, imaginação; mas esta tem suas regras, o estro leis, e se há casos em que eles rompem as leis e as regras, é porque as fazem novas, é porque se chamam Shakespeare, Dante, Goethe, Camões.

Indiquei os traços gerais. Há alguns defeitos peculiares a alguns livros, como por exemplo, a antítese, creio que por imitação de Vítor Hugo Nem por isso acho menos condenável o abuso de uma figura que, se nas mãos do grande poeta produz grandes efeitos, não pode constituir objeto de imitação, nem sobretudo elementos de escola.

Há também uma parte da poesia que, justamente preocupada com a cor local, cai muitas vezes numa funesta ilusão. Um poeta não é nacional só porque insere nos seus versos muitos nomes de flores ou aves do país, o que pode dar uma nacionalidade de vocabulário e nada mais. Aprecia-se a cor local, mas é preciso que a imaginação lhe dê os seus toques, e que estes sejam naturais, não de acarreto. Os defeitos que resumidamente aponto não os tenho por incorrigíveis; a crítica os emendaria; na falta dela, o tempo se incumbirá de trazer às vocações as melhores leis. Com as boas qualidades que cada um pode reconhecer na recente escola de que falo, basta a ação do tempo, e se entretanto aparecesse uma grande vocação poética, que se fizesse reformadora, é fora de dúvida que os bons elementos entrariam em melhor caminho, e à poesia nacional restariam as tradições do período romântico.



O TEATRO

Esta parte pode reduzir-se a uma linha de reticência. Não há atualmente teatro brasileiro, nenhuma peça nacional se escreve, raríssima peça nacional se representa. As cenas teatrais deste país viveram sempre de traduções, o que não quer dizer que não admitissem alguma obra nacional quando aparecia. Hoje, que o gosto público tocou o último grau da decadência e perversão, nenhuma esperança teria quem se sentisse com vocação para compor obras severas de arte. Quem lhas receberia, se o que domina é a cantiga burlesca ou obscena, o cancã, a mágica aparatosa, tudo o que fala aos sentidos e aos instintos inferiores?

E todavia a continuar o teatro, teriam as vocações novas alguns exemplos não remotos, que muito as haviam de animar. Não falo das comédias do Pena, talento sincero e original, a quem só faltou viver mais para aperfeiçoar-se e empreender obras de maior vulto; nem também das tragédias de Magalhães e dos dramas de Gonçalves Dias, Porto Alegre e Agrário. Mais recentemente, nestes últimos doze ou quatorze anos, houve tal ou qual movimento Apareceram então os dramas e comédias do Sr. J. de Alencar, que ocupou o primeiro lugar na nossa escola realista e cujas obras Demônio Familiar e Mãe são de notável merecimento. Logo em seguida apareceram várias outras composições dignas do aplauso que tiveram tais como os dramas dos Srs. Pinheiro Guimarães, Quintino Bocaiúva e alguns mais, mas nada disso foi adiante. Os autores cedo se enfastiaram da cena que a pouco e pouco foi decaindo até chegar ao que temos hoje, que é nada.

A província ainda não foi de todo invadida pelos espetáculos de feira; ainda lá se representa o drama e a comédia, — mas não aparece, que me conste, nenhuma obra nova e original. E com estas poucas linhas fica liquidado este ponto.



A LÍNGUA

Entre os muitos méritos dos nossos livros nem sempre figura o da pureza da linguagem. Não é raro ver intercalados em bom estilo os solecismos da linguagem comum, defeito grave, a que se junta o da excessiva influência da língua francesa. Este ponto é objeto de divergência entre os nossos escritores. Divergência digo, porque, se alguns caem naqueles defeitos por ignorância ou preguiça, outros há que os adotam por princípio, ou antes por uma exageração de princípio.

Não há dúvida que as línguas se aumentam e alteram com o tempo e as necessidades dos usos e costumes. Querer que a nossa pare no século de quinhentos, é um erro igual ao de afirmar que a sua transplantação para a América não lhe inseriu riquezas novas. A este respeito a influência do povo é decisiva. Há, portanto, certos modos de dizer, locuções novas, que de força entram no domínio do estilo e ganham direito de cidade.

Mas se isto é um fato incontestável, e se é verdadeiro o principio que dele se deduz, não me parece aceitável a opinião que admite todas as alterações da linguagem, ainda aquelas que destroem as leis da sintaxe e a essencial pureza do idioma. A influência popular tem um limite, e o escritor não está obrigado a receber e dar curso a tudo o que o abuso, o capricho e a moda inventam e fazem correr. Pelo contrário, ele exerce também uma grande parte de influência a este respeito, depurando a linguagem do povo e aperfeiçoando-lhe a razão.

Feitas as exceções devidas não se lêem muito os clássicos no Brasil. Entre as exceções poderia eu citar até alguns escritores cuja opinião é diversa da minha neste ponto, mas que sabem perfeitamente os clássicos. Em geral, porém, não se lêem, o que é um mal. Escrever como Azurara ou Fernão Mendes seria hoje um anacronismo insuportável. Cada tempo tem o seu estilo. Mas estudar-lhes as formas mais apuradas da linguagem, desentranhar deles mil riquezas, que, à força de velhas se fazem novas, — não me parece que se deva desprezar. Nem tudo tinham os antigos, nem tudo têm os modernos; com os haveres de uns e outros é que se enriquece o pecúlio comum.

Outra coisa de que eu quisera persuadir a mocidade é que a precipitação não lhe afiança muita vida aos seus escritos. Ha um prurido de escrever muito e depressa; tira-se disso glória, e não posso negar que é caminho de aplausos. Há intenção de igualar as criações do espírito com as da matéria, como se elas não fossem neste caso inconciliáveis. Faça muito embora um homem a volta ao mundo em oitenta dias; para uma obra-prima do espírito são precisos alguns mais.

Aqui termino esta notícia. Viva imaginação, delicadeza e força de sentimentos, graças de estilo, dotes de observação e analise, ausência às vezes de gosto, carências às vezes de reflexão e pausa, língua nem sempre pura, nem sempre copiosa, muita cor local, eis aqui por alto os defeitos e as excelências da atual literaturas brasileira, que há dado bastante e tem certíssimo futuro.




FONTE: http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/BT4522147.html#[4]%20NOT%C3%8DCIA%20DA%20ATUAL%20LITERATURA%20BRASILEIRA.%27

sexta-feira, 18 de março de 2011

Voyeur ocidental: Todos os muitos Apocalipses


É por Voltaire, em primeiro lugar, que encontramos uma análise mais direta das origens da religião cristã. Sem os parênteses típicos dos escolásticos e pensadores mais modestos. Considerado em paralelo Barão D'Holbach e seu "Cristianismo Revelado" - embora a obra seja menos historicista e mais sociológica.

O conceito de Apocalipse do Cristianismo, como todo o mais, é resultado último de uma miscelânea de tendências puritanas tanto do Judaísmo em crise quanto do Helenismo tardio. É defendido pela primeira vez com a eloquência usual por Justino, o mártir, nascido em Flávia Neápolis, principado romano em região síria. Como então vindouro reino dos mil anos, em Jerusalém. Em seu "Comentários sobre Isaías", alegando evidências em João, o evangelista. Defende a volta dos judeus à terra da promissão após o fim da última Tefutzah (diáspora de 70. d.C.), a comunhão com os convertidos, e a soberania do Cristo sobre a Terra (Parusia). A ideia de "et mille per annos" (mil anos), era na numerologia misticista antiga do velho mundo um símbolo de mudança e renovação.

O desenvolvimento do messianismo no seio das seitas entusiastas que criariam a Cristandade está diretamente ligado aos conflitos das forças imperiais contra os rebeldes palestinos. A Palestina ao longo da Era atual mostrou resistência à dominação de Roma em todos os aspectos. Partindo do campo religioso, grupos fanáticos, e atingindo por fim magistrados e forças militares. Enquanto as raízes da nova fé cresciam na palestina e fora dela, em obscuridades conjecturais, a tensão entre o imperialismo romano e a sua decadência, e a província da região palestina marcada por um "ostracismo" intelectual, atingiram picos sérios e que resultaram na parcial destruição da nação judaica.

Ao que parece, e sabemos por Tácito, foi através de Nero que os cristãos - grupo mais ou menos inteligível e prolífero entre classes inferiores de regiões colonizadas - acataram ares de criminalidade. Embora a atitude romana quanto ao religioso fosse tolerante, era considerado Superstitio Illicita (superstição/culto ilícito). Tão hermético quanto o Judaísmo, porém perigosamente proselitista, as "missões" dos apóstolos eram vistas como possíveis complôs e insubordinações. Nero, em ocasião de seu desastroso governo, utilizou a já existente animosidade contra os cristãos para tentar inutilmente se fortalecer enquanto imperador - o famoso incêndio de Roma (64 d.C.). Daí em diante, a perseguição aos nazarenos foi oficializada (por extensão reptiliana os politicamente revoltados na Palestina).

Embora inocentados do incêndio e de desejos revolucionários por Tácito e também Plínio, intelectualmente os cristãos ainda permaneceriam em condição de desprezo durante a rápida cristianização das classes romanas começando por baixo. Visto como Exitiabilis Superstitio (culto funesto), tanto por seu caráter puritana quanto por seu louvor a vidas e mundos futuros e distantes. "Religião contrária à Natureza", segundo pensavam os patrícios estóicos e republicanos epicuristas. A Metafísica - exegese platônica - não existia como lucidez na mente helena.

O Apocalipse era então - mais ou menos como hoje - um misto de esperança e desespero religioso amalgamado em revolução política. A grande vingança contra Roma, os imperialistas, a força dos homens. Uma grande vingança contra a Natureza, por assim dizer. Tertuliano, considerado herege por fim, Santo Irineu, definidor das "boas referências" sobre Jesus, e Orígenes, o mesmo que castrou a si mesmo, consideravam o Apocalipse muito real, e totalmente físico. Eusébio entre outros e o Concílio de Laodiceia (363-364 d.C.) desconsideraram o Apocalipse. Todos inspirados por Deus e igualmente certos.

No ano 1.000 d.C. o velho mundo estava banhado em guerras e precariedade social, intelectual e econômica.

Com o desenvolvimento das Escolas o Apocalipse (um tanto atrasado) tomou aspectos mais... Santos, metafísicos e subjetivos.

"Para todos S. João ainda padejava na sepultura, fazendo a terra levantar e baixar continuamente. Entanto esses mesmos senhores certos de que S. João não estava de todo morto, também estavam certos de que ele não escrevera o Apocalipse. Os advogados do reinado de mil anos, não obstante, mantiveram-se irremovíveis em sua opinião. Sulpício Severo (História Sagrada, livro 9) chama insensatos e ímpios aos que não acatavam o Apocalipse. Afinal, depois de muita dúvida, muita oposição de concílio a concílio prevaleceu o parecer de Sulpício Severo. Deslindado o mistério, decidiu a igreja ser o Apocalipse incontestavelmente de S. João. Não há, pois, apelar. Atribuíram as comunhões religiosas cada qual a si as profecias desse livro. Nele viram os ingleses as revoluções da Grã Bretanha. Os luteranos, as convulsões da Alemanha. Os reformados da França, o reinado de Carlos IX e a regência de Catarina de Médicis. Todos tiveram igualmente razão".

Voltaire

sexta-feira, 4 de março de 2011

Sala Vazia - Um Koan científico.

Nos dias em que Gerald Jay Sussman era ainda novato, veio Marvin Minsky uma vez e sentou com ele, enquanto fazia um hacking em um PDP-6.

"O que você está fazendo?" perguntou Minsky.
"Estou treinando uma rede neural artificial com fios de forma aleatória para disputar o jogo da velha contra o programa" Sussman respondeu.
"Por que uma rede com fios de forma aleatória?", Perguntou Minsky.
"Eu não quero que ele tenha qualquer preconceito de como jogar", disse Sussman.
Minsky, em seguida, fechou os olhos.
"Por que você fechou os olhos?" Sussman perguntou ao mestre.
"Assim a sala estará vazia."

Naquele momento, Sussman foi esclarecida.

quinta-feira, 3 de março de 2011

Finiverim - A Parábola

"Velho e febril bibliômano, procurando em velhas negras e renegadas estantes por antigo relicário (maior e sublime dentre os relicários), prova última de sua paixão, sucumbiu em desvário. Ao encontrá-lo portanto, atônico, pungente, nele o relicário colossal fantasma; sacro escrito, guardado, palavras em mortuária fatura. Jamais existidas.

Dizia assim;

O mais forte suplanta o fraco, e o múltiplo abandona o único. Danado; derradeiro dos fortes, único e invariado. Danado do passado, anelo ao passado, força sem poder. Poder, sem haver. Extensão sem contingência, potência sem vontade. Finado, homem último, finadas, palavras caladas, finado, medos aceitos, finado, verbo não-dito, finados, miríades miríades de corpos, finados, miríades de seres, todos os fins, todos os inícios, factus eum... E tu, olho que observa, é o pó do vazio, e o abismo, e o desuso, próprio abismo que contempla. E ele é tu, e tu, nada
.

Cinzas de um velho deus, sagrados escuros. Sucesso de quem tudo desejava reter, e tudo verter. E o sucesso foi ser retido, e pela morte retirado, eliminado, em magnitude, extinguido. Pois ao soar de - nada - Bibliômano inexistiu. Jamais, e em qualquer tempo. Meu amigo,

Aureliano... Teu nome nunca dito: Aureliano".




.
Eu lhe ofereço minha vida.
Você pode me dar eternidade?
O mundo é tão vazio
Eu não posso viver e não quero mais
Eu lhe ofereço minha vida.
Você pode me dar eternidade?
.
(Exitus, E Nomine)

Sub Umbra

(Capítulo extraído do livro “Os Trabalhadores do Mar”, de Victor Hugo)



Às vezes, alta noite, Gilliatt abria os olhos e olhava para a sombra.
Sentia-se extremamente comovido.
Olhar aberto sobre trevas. Situação lúgubre; ansiedade.
Existe a pressão da sombra.


Inexprimível teto de tênebras; alta obscuridade sem mergulhador possível; luz mesclada à obscuridade, mas uma luz vencida e sombria; claridade reduzida a pó; é semente? É cinza? Milhões de fachos, claridade nula; vasta ignição que não diz o seu segredo, uma difusão de fogo em poeira que parece um bando de faíscas paradas, a desordem do turbilhão e a imobilidade do sepulcro, o problema oferecendo uma abertura de precipício, o enigma desvendando e escondendo a sua face, o infinito mascarado com a escuridão, eis a noite. Pesa no homem esta superposição.


Esse amálgama de todos os mistérios a um tempo, do mistério cósmico e do mistério fatal, abate a cabeça humana.


A pressão da sombra atua em sentido inverso nas diferentes espécies de almas. O homem, diante da noite, reconhece-se incompleto. Vê a obscuridade e sente a enfermidade. O céu negro é o homem cego. Entretanto, com a noite, o homem abate-se, ajoelha-se, prosterna-se, roja-se, arrasta-se para um buraco, ou procura asas. Quase sempre quer fugir a essa presença informe do desconhecido.


Pergunta o que é; treme, curva-se, ignora; às vezes quer ir lá.
Aonde?
Lá.
Lá? O que é? Que há lá?


Essa curiosidade é evidentemente a das coisas defesas, porque para aquele lado todas as pontes à roda do homem estão cortadas. Mas o desejo atrai, porque é golfão. Onde não vai o pé, vai o olhar, onde o olhar pára, pode continuar o espírito. Não há homem que não tente, por mais fraco e insuficiente que seja. O homem, segundo a sua natureza, investiga ou espera diante da noite. Para uns é rechaçamento, para outros é uma dilatação. O espetáculo é sombrio. Mescla-se a ele o indefinível.


Vai a noite serena? É um fundo de sombra. Vai tempestuosa? É um fundo de fumaça. O ilimitado recusa-se e oferece-se ao mesmo tempo, fechado à experiência, aberto à conjetura. Infinitas picadas de luz tornam mais negra a obscuridade sem fundo. Carbúnculos, cintilações, astros. Presenças verificadas no Ignorado; tremendos reptos para ir tocar esses clarões. São estacas da criação no absoluto; são marcos de distância lá onde já não há distância; é uma espécie de numeração impossível, e toda via real, do canal das profundezas. Um ponto microscópico que fulge, depois outro, mais outro, mais outro; é o imperceptível, é o enorme. Essa luz é um foco, esse foco é uma estrela, essa estrela é um sol, esse sol é um universo, esse universo é nada. Todo número é zero diante do infinito.


Esses universos que nada são, existem. Verificando-os, sente-se a diferença que vai entre ser nada e não ser.
O inacessível ligado ao inexplicável, eis o céu.
Dessa contemplação solta-se um fenômeno sublime: o crescimento da alma pelo assombro.
O medo sagrado é próprio do homem; a besta ignora esse medo. A inteligência acha nesse terror augusto o seu eclipse e a sua prova.


A sombra é uma: vem daí o seu horror. É, ao mesmo tempo, complexa: vem daí o terror. A sua unidade pesa no nosso espírito e saca-lhe a vontade de resistir.


A complexidade faz com que se olhe para todos os lados; parece que se devem recear assaltos súbitos. O homem rende-se e defende-se. Fica em presença de Tudo, daí vem a submissão e de Muitos, daí vem a desconfiança. A unidade da sombra contém um múltiplo. Múltiplo misterioso, visível na matéria, sensível no pensamento. Faz silêncio, razão de mais para espreitar.
A noite – já o disse algures quem escreve estas linhas – é o estado próprio, normal da criação especial de que fazemos parte. O dia, breve na duração como no espaço, é apenas uma proximidade de estrela.


O prodígio noturno universal não se realiza sem atritos, e os atritos de uma tal máquina são as contusões da vida. Os atritos da máquina, é o que chamamos o Mal. Sentimos nessa obscuridade o mal, desmentido latente da ordem divina, blasfêmia implícita do fato rebelde ao ideal. O mal acrescenta uma teratologia de mil cabeças ao vasto conjunto cósmico. O mal está presente em tudo para protestar. É furacão e atormenta a marcha de um navio, é caos e entrava o desabrochar do mundo. O Bem tem a unidade, o Mal tem a ubiqüidade. O mal desconcerta a vida, que é uma lógica. Faz devorar a mosca pelo pássaro, e o planeta pelo cometa. O mal é um borrão na natureza.


A obscuridade noturna peja-se de uma vertigem. Quem a aprofunda, submerge-se e debate-se. Não há fadiga comparável e esse exame de trevas. É o estudo de um apagamento.


Não há lugar definitivo para pousar o espírito. Pontos de partida sem ponto de chegada. O cruzamento das soluções contraditórias, todos os ramos da dúvida a um tempo, a ramificação dos fenômenos esfoliando-se sem limite sob uma impulsão indefinida, mistura de todas as leis, uma promiscuidade insondável que faz com que a mineralização vegete, com que a vegetação viva, com que o pensamento pese, com que o amor irradie e a gravitação ame; a imensa frente de ataque de todas as questões desenvolvendo-se na obscuridade sem limites; o entrevisto esboçando o ignorado; a simultaneidade cósmica em plena aparição, não para o olhar, mas para a inteligência, no espaço indistinto; o invisível tornado visão. É a sombra. O homem está embaixo. Não conhece os pormenores, mas suporta, em qualidade proporcionada ao seu espírito, o peso monstruoso do conjunto. Esta obsessão impelia os pastores caldeus à astronomia. Saem dos poros da criação revelações involuntárias; faz-se por si mesma uma transudação de ciência e invade o ignorante. Debaixo dessa impregnação misteriosa torna-se o solitário, muitas vezes sem ter consciência, um filósofo natural.


A obscuridade é indivisível. É habitada. Habitada sem deslocação pelo absurdo; habitada também com deslocação. Move-se ali dentro alguma coisa, o que é para assustar. Uma formação sagrada desenvolve ali as suas fases. Premeditações, potências, destinos intencionais laboram aí em comum uma obra desmedida. Vida terrível e horrível é o que existe ali dentro. Há vastas evoluções dos astros, a família estelar, a família planetária, o pólen zodiacal, o Quid divinum das correntes, dos eflúvios, das polarizações e das alterações; há o amplexo e o antagonismo, um magnífico fluxo e refluxo da antítese universal, o imponderável em liberdade no meio dos centros; há a seiva nos globos, a luz fora dos globos, o átomo errante, o germe esparso, curvas de fecundação, encontros de ajuntamento e de combate, profusões inauditas, distâncias que parecem sonhos, circulações vertiginosas, mergulhos de mundos no incalculável, prodígios perseguindo-se nas trevas, um maquinismo definitivo, sopro de esferas em fuga, rodas que se sente andarem, existe e esconde-se; é o inexpugnável fora de alcance. Fica-se convencido até à opressão. Tem-se em si uma evidência negra. Nada se pode agarrar. Esmaga-nos o impalpável.


Por toda a parte o incompreensível; em parte alguma o inteligível.
E a tudo isto acrescentai a terrível questão: esta Imanência é um Ser?
Está-se debaixo da sombra. Olha-se. Escuta-se.


Entretanto a terra sombria caminha e rola, as flores têm consciência desse movimento enorme; a silena abre-se às 11 horas da noite e o hemerocale às 5 horas da manhã. Impressível regularidade.
Em outras profundidades a gota de água faz-se mundo, o infusório pulula, a fecundidade gigante sai do animálculo, o imperceptível ostenta a sua grandeza, o sentido inverso da imensidade manifesta-se; uma diatoméia produz em uma hora 1 milhar e 300 milhões de diatoméias.


Que proposição de todos os enigmas ao mesmo tempo!
Está aí o irredutível.


Constrange-se-nos à fé. Crer por força, eis o resultado. Mas para estar tranqüilo não basta ter fé. A fé tem uma estranha necessidade de forma. Daí vêm as religiões. Nada é tão opressivo como uma crença sem delineamento.
Qualquer que seja o pensamento e a vontade, qualquer que seja a resistência interior, olhar a sombra não é olhar, é contemplar.


Que fazer desses fenômenos? Como mover-se debaixo de sua convergência? É impossível decompor esta pressão. Que devaneio se deve ajuntar a todos esses confinantes misteriosos? Quantas revelações abstrusas, simultâneas, obscurecendo-se em sua própria multidão, espécie de balbuciar do verbo! A sombra é um silêncio; mas esse silêncio diz tudo. Surge majestosamente um resultado: Deus. Deus é a noção do incompreensível. Essa noção está no homem. Os silogismos, as querelas, as negações, os sistemas, as religiões passam por cima sem diminuí-la. A sombra inteira afirma aquela noção. Mas turva-se tudo o mais. Imanência formidável. A inexprimível harmonia das forças manifesta-se pelo equilíbrio dessa obscuridade. O universo pende; nada tomba. O deslocamento incessante e desmedido opera-se sem acidente e sem fratura. O homem participa desse movimento de translação e à quantidade de oscilação que suporta que suporta chama ele destino. Onde começa o destino? Onde acaba a natureza? Que diferença há entre um acontecimento e uma estação, entre um pesar e uma chuva, entre uma virtude e uma estrela? Uma hora não é uma onda? Continua o movimento da roda, sem responder ao homem, em sua revolução impassível. O céu estrelado é uma visão de rodas, de pêndulas e de contrapesos. É a contemplação suprema forrada de suprema meditação. É toda a realidade e mais a abstração. Nada além daí. O homem sente-se preso. Fica à discrição da sombra. Não há evasão possível. Vê-se ele naquele composto de rodas, é parte integrante de um Todo ignorado, sente o desconhecido que está fora dele. Isto é o anuncio sublime da morte. Que angústia e, ao mesmo tempo, que fascinação! Aderir ao infinito e por essa aderência atribuir-se uma imortalidade necessária, quem sabe? Uma eternidade possível sentir na prodigiosa vaga desse silêncio universal e obstinação insubmersível do eu! Contemplar os astros e dizer: “Sou uma alma como vós!” Contemplar a obscuridade e dizer: “Sou um abismo como tu”.


Essas enormidades são a noite.
Tudo isso aumentado, pela solidão, pesava em Gilliatt.
Compreendia-o ele? Não. Sentia-o? Sim.
Gilliatt era um grande espírito turvado e um grande coração selvagem.