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Pederneira. Substância muito usada no fabrico de corações humanos. (Ambrose Bierce)

quinta-feira, 3 de março de 2011

Sub Umbra

(Capítulo extraído do livro “Os Trabalhadores do Mar”, de Victor Hugo)



Às vezes, alta noite, Gilliatt abria os olhos e olhava para a sombra.
Sentia-se extremamente comovido.
Olhar aberto sobre trevas. Situação lúgubre; ansiedade.
Existe a pressão da sombra.


Inexprimível teto de tênebras; alta obscuridade sem mergulhador possível; luz mesclada à obscuridade, mas uma luz vencida e sombria; claridade reduzida a pó; é semente? É cinza? Milhões de fachos, claridade nula; vasta ignição que não diz o seu segredo, uma difusão de fogo em poeira que parece um bando de faíscas paradas, a desordem do turbilhão e a imobilidade do sepulcro, o problema oferecendo uma abertura de precipício, o enigma desvendando e escondendo a sua face, o infinito mascarado com a escuridão, eis a noite. Pesa no homem esta superposição.


Esse amálgama de todos os mistérios a um tempo, do mistério cósmico e do mistério fatal, abate a cabeça humana.


A pressão da sombra atua em sentido inverso nas diferentes espécies de almas. O homem, diante da noite, reconhece-se incompleto. Vê a obscuridade e sente a enfermidade. O céu negro é o homem cego. Entretanto, com a noite, o homem abate-se, ajoelha-se, prosterna-se, roja-se, arrasta-se para um buraco, ou procura asas. Quase sempre quer fugir a essa presença informe do desconhecido.


Pergunta o que é; treme, curva-se, ignora; às vezes quer ir lá.
Aonde?
Lá.
Lá? O que é? Que há lá?


Essa curiosidade é evidentemente a das coisas defesas, porque para aquele lado todas as pontes à roda do homem estão cortadas. Mas o desejo atrai, porque é golfão. Onde não vai o pé, vai o olhar, onde o olhar pára, pode continuar o espírito. Não há homem que não tente, por mais fraco e insuficiente que seja. O homem, segundo a sua natureza, investiga ou espera diante da noite. Para uns é rechaçamento, para outros é uma dilatação. O espetáculo é sombrio. Mescla-se a ele o indefinível.


Vai a noite serena? É um fundo de sombra. Vai tempestuosa? É um fundo de fumaça. O ilimitado recusa-se e oferece-se ao mesmo tempo, fechado à experiência, aberto à conjetura. Infinitas picadas de luz tornam mais negra a obscuridade sem fundo. Carbúnculos, cintilações, astros. Presenças verificadas no Ignorado; tremendos reptos para ir tocar esses clarões. São estacas da criação no absoluto; são marcos de distância lá onde já não há distância; é uma espécie de numeração impossível, e toda via real, do canal das profundezas. Um ponto microscópico que fulge, depois outro, mais outro, mais outro; é o imperceptível, é o enorme. Essa luz é um foco, esse foco é uma estrela, essa estrela é um sol, esse sol é um universo, esse universo é nada. Todo número é zero diante do infinito.


Esses universos que nada são, existem. Verificando-os, sente-se a diferença que vai entre ser nada e não ser.
O inacessível ligado ao inexplicável, eis o céu.
Dessa contemplação solta-se um fenômeno sublime: o crescimento da alma pelo assombro.
O medo sagrado é próprio do homem; a besta ignora esse medo. A inteligência acha nesse terror augusto o seu eclipse e a sua prova.


A sombra é uma: vem daí o seu horror. É, ao mesmo tempo, complexa: vem daí o terror. A sua unidade pesa no nosso espírito e saca-lhe a vontade de resistir.


A complexidade faz com que se olhe para todos os lados; parece que se devem recear assaltos súbitos. O homem rende-se e defende-se. Fica em presença de Tudo, daí vem a submissão e de Muitos, daí vem a desconfiança. A unidade da sombra contém um múltiplo. Múltiplo misterioso, visível na matéria, sensível no pensamento. Faz silêncio, razão de mais para espreitar.
A noite – já o disse algures quem escreve estas linhas – é o estado próprio, normal da criação especial de que fazemos parte. O dia, breve na duração como no espaço, é apenas uma proximidade de estrela.


O prodígio noturno universal não se realiza sem atritos, e os atritos de uma tal máquina são as contusões da vida. Os atritos da máquina, é o que chamamos o Mal. Sentimos nessa obscuridade o mal, desmentido latente da ordem divina, blasfêmia implícita do fato rebelde ao ideal. O mal acrescenta uma teratologia de mil cabeças ao vasto conjunto cósmico. O mal está presente em tudo para protestar. É furacão e atormenta a marcha de um navio, é caos e entrava o desabrochar do mundo. O Bem tem a unidade, o Mal tem a ubiqüidade. O mal desconcerta a vida, que é uma lógica. Faz devorar a mosca pelo pássaro, e o planeta pelo cometa. O mal é um borrão na natureza.


A obscuridade noturna peja-se de uma vertigem. Quem a aprofunda, submerge-se e debate-se. Não há fadiga comparável e esse exame de trevas. É o estudo de um apagamento.


Não há lugar definitivo para pousar o espírito. Pontos de partida sem ponto de chegada. O cruzamento das soluções contraditórias, todos os ramos da dúvida a um tempo, a ramificação dos fenômenos esfoliando-se sem limite sob uma impulsão indefinida, mistura de todas as leis, uma promiscuidade insondável que faz com que a mineralização vegete, com que a vegetação viva, com que o pensamento pese, com que o amor irradie e a gravitação ame; a imensa frente de ataque de todas as questões desenvolvendo-se na obscuridade sem limites; o entrevisto esboçando o ignorado; a simultaneidade cósmica em plena aparição, não para o olhar, mas para a inteligência, no espaço indistinto; o invisível tornado visão. É a sombra. O homem está embaixo. Não conhece os pormenores, mas suporta, em qualidade proporcionada ao seu espírito, o peso monstruoso do conjunto. Esta obsessão impelia os pastores caldeus à astronomia. Saem dos poros da criação revelações involuntárias; faz-se por si mesma uma transudação de ciência e invade o ignorante. Debaixo dessa impregnação misteriosa torna-se o solitário, muitas vezes sem ter consciência, um filósofo natural.


A obscuridade é indivisível. É habitada. Habitada sem deslocação pelo absurdo; habitada também com deslocação. Move-se ali dentro alguma coisa, o que é para assustar. Uma formação sagrada desenvolve ali as suas fases. Premeditações, potências, destinos intencionais laboram aí em comum uma obra desmedida. Vida terrível e horrível é o que existe ali dentro. Há vastas evoluções dos astros, a família estelar, a família planetária, o pólen zodiacal, o Quid divinum das correntes, dos eflúvios, das polarizações e das alterações; há o amplexo e o antagonismo, um magnífico fluxo e refluxo da antítese universal, o imponderável em liberdade no meio dos centros; há a seiva nos globos, a luz fora dos globos, o átomo errante, o germe esparso, curvas de fecundação, encontros de ajuntamento e de combate, profusões inauditas, distâncias que parecem sonhos, circulações vertiginosas, mergulhos de mundos no incalculável, prodígios perseguindo-se nas trevas, um maquinismo definitivo, sopro de esferas em fuga, rodas que se sente andarem, existe e esconde-se; é o inexpugnável fora de alcance. Fica-se convencido até à opressão. Tem-se em si uma evidência negra. Nada se pode agarrar. Esmaga-nos o impalpável.


Por toda a parte o incompreensível; em parte alguma o inteligível.
E a tudo isto acrescentai a terrível questão: esta Imanência é um Ser?
Está-se debaixo da sombra. Olha-se. Escuta-se.


Entretanto a terra sombria caminha e rola, as flores têm consciência desse movimento enorme; a silena abre-se às 11 horas da noite e o hemerocale às 5 horas da manhã. Impressível regularidade.
Em outras profundidades a gota de água faz-se mundo, o infusório pulula, a fecundidade gigante sai do animálculo, o imperceptível ostenta a sua grandeza, o sentido inverso da imensidade manifesta-se; uma diatoméia produz em uma hora 1 milhar e 300 milhões de diatoméias.


Que proposição de todos os enigmas ao mesmo tempo!
Está aí o irredutível.


Constrange-se-nos à fé. Crer por força, eis o resultado. Mas para estar tranqüilo não basta ter fé. A fé tem uma estranha necessidade de forma. Daí vêm as religiões. Nada é tão opressivo como uma crença sem delineamento.
Qualquer que seja o pensamento e a vontade, qualquer que seja a resistência interior, olhar a sombra não é olhar, é contemplar.


Que fazer desses fenômenos? Como mover-se debaixo de sua convergência? É impossível decompor esta pressão. Que devaneio se deve ajuntar a todos esses confinantes misteriosos? Quantas revelações abstrusas, simultâneas, obscurecendo-se em sua própria multidão, espécie de balbuciar do verbo! A sombra é um silêncio; mas esse silêncio diz tudo. Surge majestosamente um resultado: Deus. Deus é a noção do incompreensível. Essa noção está no homem. Os silogismos, as querelas, as negações, os sistemas, as religiões passam por cima sem diminuí-la. A sombra inteira afirma aquela noção. Mas turva-se tudo o mais. Imanência formidável. A inexprimível harmonia das forças manifesta-se pelo equilíbrio dessa obscuridade. O universo pende; nada tomba. O deslocamento incessante e desmedido opera-se sem acidente e sem fratura. O homem participa desse movimento de translação e à quantidade de oscilação que suporta que suporta chama ele destino. Onde começa o destino? Onde acaba a natureza? Que diferença há entre um acontecimento e uma estação, entre um pesar e uma chuva, entre uma virtude e uma estrela? Uma hora não é uma onda? Continua o movimento da roda, sem responder ao homem, em sua revolução impassível. O céu estrelado é uma visão de rodas, de pêndulas e de contrapesos. É a contemplação suprema forrada de suprema meditação. É toda a realidade e mais a abstração. Nada além daí. O homem sente-se preso. Fica à discrição da sombra. Não há evasão possível. Vê-se ele naquele composto de rodas, é parte integrante de um Todo ignorado, sente o desconhecido que está fora dele. Isto é o anuncio sublime da morte. Que angústia e, ao mesmo tempo, que fascinação! Aderir ao infinito e por essa aderência atribuir-se uma imortalidade necessária, quem sabe? Uma eternidade possível sentir na prodigiosa vaga desse silêncio universal e obstinação insubmersível do eu! Contemplar os astros e dizer: “Sou uma alma como vós!” Contemplar a obscuridade e dizer: “Sou um abismo como tu”.


Essas enormidades são a noite.
Tudo isso aumentado, pela solidão, pesava em Gilliatt.
Compreendia-o ele? Não. Sentia-o? Sim.
Gilliatt era um grande espírito turvado e um grande coração selvagem.

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