Repita a senha não-iniciado:

Pederneira. Substância muito usada no fabrico de corações humanos. (Ambrose Bierce)

domingo, 22 de maio de 2011

Jerubaal



Um sujeito na Bíblia que me agrada, é Gideão. Li todo o livro preto; tirando um ou outro relato, uma narrativa avara de qualidade. Mas Gideão é diferente. Tem aquela estranha categoria de coragem de obstinação (O único tipo de proatividade vista com bons olhos pelos temperamentos por assim dizer apostólicos). Certas criaturas não deixam nunca de entender as paixões como inclinações vis; na recusa, ou em um prazer carregado de simbolismo negativo. Enfim, tema para outros momentos...

O mais interessante em Gideão é seu caráter. Para quem não sabe, Gideão segundo a lenda foi encontrado por um anjo [i]malhando trigo no lagar[/i]. Algo como tomar o café na Copa. Com todo o solilóquio comum do livro preto, nosso herói não se comove e exige provas científicas de seu, por assim dizer, Chamado. É o único gênio crítico em todo o texto além de Tomé e Jó. Por fim, depois de mostrar teimosia, animosidade, e ceticismo, adere aos planos bélicos absurdos inexplicáveis e invencíveis da Divindade. E para concluir seu estranho temperamento, renuncia a posição de liderança merecida.

Não é também meu objetivo fazer criticismo bíblico aqui. Quero apenas registrar a impressão da situação que pretendo relatar, pois, não foi outra a atitude que presenciei. A coragem de obstinação, como chamo, é talvez a semelhança que associo entre um causo e outro. Aquele rapaz de ânimo pacífico, olhar perdido, conversas desconexas. Eu me pergunto ainda. Eu me questiono as motivações de um ato tão contrário ao seu feitio.

Coragem de obstinação. Não é uma característica muito observada. Estou tentando esclarecer, repassando mentalmente, deixar claro para a minha própria consciência, uma dificílima situação moral, e profundo caso de consciência. Um amor de renúncia quasimodesco, ou a paulina confiança no martírio, fé sebastiânica. Existem efetivamente pessoas assim. São brandos e cordiais, verdadeiras bordas de rios, mas no momento oportuno capazes de avançar pelo fogo cruzado, permanecer entrincheirados, manter uma ideia fixa ou uma lealdade prejudicial até a morte. E não são necessariamente gênios, podem ser rasos de intelecto. Do meu círculo mais íntimo, já passaram alguns assim. Não é o caso.

Eu nem conhecia bem o sujeito, e não foi um problema. Posso dizer que fui feito para a chancelaria. Sou um logista, mas de boa-fé com os instintos e acasos de percurso. Em verdade, sou bem [i]romano[/i] no assunto: todas as inclinações instintivas são boas e justas. O sujeito não. Empalidece, ruboriza, procura meios e modos, parece atabalhoado em seus pudores.

Certas criaturas podem viver em plena e inalterada paz. Eu não invejo uma tamanha quietude. Mas aqui, com os jornais clamando sangue, agentes varrendo as ruas e os escritos de furor, as agitações e os rumores correndo de boca em boca, uma natureza delicada assim... "Fugir?"; perguntou, como se vivêssemos o mais extraordinário conforto. Ele me adora, apesar de tudo. Sou um bruto bem flexível, diz. Mas sou bruto.

O amigo leitor pode imaginar uma Barcelona da Guerra Civil, uma Alemanha do pós-guerra, uma correspondência de um país do norte africano, ou que sou um detetive investigador analisando projetos de UPPs, ou mesmo que nosso amigo não passa muito de um curioso aventureiro escritor, ou jornalista, aventurando pela região perigosa Oeste, Fronteira, ou mais longe uma base espacial no cerco de uma colônia humana rebelde. O cenário não faz diferença, e por questões profissionais não tenho a menor vontade de ser mais claro. Detenhamo-nos no caso de consciência.

Paguei o café. Disse de modo lato toda a situação. Nos últimos tempos, resguardo meus pés bem longe dos verdadeiros conflitos. Muitos podem crer que as minudências da vida social representam desafios. Representam. São desafios que ignoro de todo, então, por assim dizer, não me preocupam. Um ponto de quase semelhança, pois ele é uma espécie de trânsfuga, eu não. Ele escutou com viva e analítica atenção. Eu via a ingenuidade palpitar em seu rosto; o Inferno é um certo tipo de brilho profundo no olhar, e que só alguns reconhecem. Blasfemos, naturalmente.

Mas eu falava em Gideão... Não sei ao certo. Acredito que por ter se apresentado como cristão, tenha remexido em meu cérebro velhas lembranças da infância. Um Gideão, com um chamado messiânico de compromissos, sonhos. Falava muito. Vibrava visivelmente suas ideias. Um tipo fascinante. Eu não tinha aqui alguns objetivos complexos? No fim das contas, eu faço o meu lado, e é bem nossa diferença: Farei o meu, farei minha defesa, ou minha pergunta, abandonarei minhas convicções ou afirmarei, negarei e talvez aceite pela vista das mãos furadas; ele não, confiante demais no curso natural das coisas, comodamente afeito aos seus possíveis, e assim mesmo, um nada o faria mudar de ideia. O infeliz quer ficar e ver, ou melhor, ir. Não posso deixar de notar um assim.


Ver? Nada para ser visto. O declínio agudo de todas as coisas. Para além do horizonte, ruas abandonadas, barreiras de contenção, o Juízo Final. Mas ele deseja. Ardendo de desejo de ver e compreender - principalmente compreender - como um anjo curioso que desce ao Inferno para aquecer os pés. O mais absurdo de tudo: tem minha idade.


Eu sou uma espécie de luz tênue no mar escuro no qual meteu os joelhos. Quer dizer, acompanho seu raciocínio e não finjo não perceber sua presença. A gente daqui é resistente e evasiva. Ele deu uma sorte danada. Semana próxima embarco para a região contestada.


Ele espera ir também. Está muito confiante. De ir, por assim dizer. Eu não gosto de manter relações de dependência. Mas sou um diabrete sociável, não? Quando convém. Ele é um espelho, e o efeito me liga. Sou eu, quase materialmente, em sonhos e utopias, no frescor de crenças. Eu sou ele; embrutecido. Somos um passado e um futuro caminhando para um presente próximo.


Ele sai. Parece meditar em possíveis rascunhos para o dia. Parece em sua esperança calma e impenetrável aguardar a descida, o muito além do crepúsculo vermelho alaranjado que observo. Eu apenas guardo comigo, ideias dos meus dias duvidosos.


- Querida, traga algo decente agora. Com álcool.

sábado, 14 de maio de 2011

Cronismos

Comentários levianos é tudo que desejam. Pequenas banalidades da vida. Pequenas minudências de um detalhe e outro, e pupilos indulgentes. Defitivamente o trabalho contratado de terceiros não me agrada. É da natureza da canalha o gosto pelas pequenas vitórias, mas, e é o orgulho quem diz: não existe diferença.


Vez por outra é oportuno.


O café esfria, os papéis formam um pequeno monte. São as cantadas, réplicas e tréplicas. Os amores extravagantes, os causos mais banais, as artificialidades mais incoerentes para o tédio animoso. Conheço a pessoa, em especial o artista, de acordo com seus gostos dentro de certos assuntos: se ele fala daquilo que faz, daquilo que sonha, daquilo que pensa dever agradar, ou daquilo que tenta esquecer.


O Futuro, verdadeiro juiz de todos os atos, escolhe ao seu gosto uns e outros. Não é comum, mas até mesmo um antigo clássico pode ser bem ridículo. A largura de um discurso, a perenidade de uma sensação, não são virtudes relacionadas com o prestígio, e aqui, o Destino pinta suas grandes ironias, e troca o rei pelo bobo vez por outra.

No mínimo, é preciso viver na liberalidade de um cortesão. Então, vez por outra a mão declama às generalidades usuais. o bonachão da vida, do modernismo esclerosado, Era da lassidão, da confusão, a verossimilhança da hora. Com palavras mais simples, naturalmente.