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Pederneira. Substância muito usada no fabrico de corações humanos. (Ambrose Bierce)

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Insultos de Mencken

O CÉTICO

Nenhum homem acredita piamente em nenhum outro homem. Pode-se acreditar piamente numa idéia, mas não em um homem. No mais alto grau de confiança que ele pode despertar, haverá sempre o aroma da dúvida – uma sensação meio instintiva e meio lógica de que,no fim das contas, o vigarista deve ter um ás escondido na manga. Esta dúvida, como parece óbvio, é sempre mais do que justificada, porque ainda não nasceu o homem merecedor de confiança ilimitada – sua traição, no máximo, espera apenas por uma tentação suficiente. O problema do mundo não é o de que os homens sejam muito suspeitos neste sentido, mas o de que tendem a ser confiantes demais – e de que ainda confiam demais em outros homens, mesmo depois de amargas experiências.

Acredito que as mulheres sejam sabiamente menos sentimentais, tanto nisto como em outras coisas.Nenhuma mulher casada põe a mão no fogo por seu marido, nem age com se confiasse nele.Sua principal certeza assemelha-se à de um batedor de carteiras:

a de que o guarda que o flagrou poderá ser subornado.



O OPERÁRIO

Todas as teorias democráticas, sejam burguesas ou socialistas, levam necessariamente em seu recheio algum conceito de dignidade do trabalho. Se os despossuídos fossem privados desta ilusão de que seus sofrimentos na linha de montagem são, de alguma forma, louváveis e agradáveis a Deus, só lhes restaria em seu ego uma dor de barriga. Não obstante, uma ilusão é uma ilusão, e esta é das piores. Ela é fruto da confusão entre um artista que se orgulha do seu trabalha e a docilidade canina e penosa do operário em sua máquina. A diferença é importante e enorme. Mesmo sem qualquer remuneração, o artista continuará a trabalhar do mesmo jeito; sua verdadeira recompensa, de fato, é quase sempre tão mísera que ele chega a passar fome. Mas suponha que o operário de uma fábrica de tecidos não ganhe nada por seu trabalho: continuaria trabalhando do mesmo jeito? Pode-se imagina-lo submetendo-se voluntariamente a uma compulsão irresistível de expressar sua alma em mais 200 pares de calcinhas femininas?



O CIENTISTA

O valor dado pelo mundo sobre os motivos que levam os cientistas a fazer isto ou aquilo é freqüentemente e grosseiramente injusto e inexato. Considere, por exemplo, dois motivos: uma mera curiosidade insaciável e o desejo de fazer o bem. O último é considerado muito mais importante que o primeiro e, no entanto, é o primeiro que aciona um dos homens mais úteis que a raça humana produziu até hoje: o pesquisador científico O que realmente o desperta não é a idéia de prestar um serviço de araque, mas uma sede ilimitada e quase patológica de penetrar o desconhecido, de descobrir o segredo, de chegar aonde nunca se tinha chegado. Seu protótipo não é o de benfeitor que liberta seus escravos, nem o do bem samaritano que levanta os caídos, mas o de um sabujo farejando furiosamente em busca de infinitos buracos de ratos.



O EMPRESÁRIO

Existe um sólido instinto que põe o empresário abaixo de todos os outros profissionais e joga-lhe às costas um fardo de inferioridade social do qual não consegue se livrar, mesmo na América. O próprio empresário reconhece esta suposição de sua inferioridade, mesmo quando protesta contra ela. É o único homem, além do verdugo e do gari, que vive se desculpando por sua ocupação, para fazer parecer, quando atinge o objetivo de seu trabalho – i. e., ter ganho uma montanha de dinheiro --, que dinheiro não era o objetivo de seu trabalho.



O HOMEM MÉDIO

Costuma-se jogar na cara dos marxistas, com a sua concepção materialista da História, que eles subestimam certas qualidades espirituais do homem que não
dependem de quanto ele ganhe ou deixe de ganhar.

O argumento é o de que essas qualidades colorem as aspirações e atividades do homem civilizado tanto quanto são coloridas pela sua condição material, tornando assim impossível simplesmente reduzir o homem a uma máquina econômica. Como exemplos, os antimarxistas citam o patriotismo, a piedade, o senso estético e a vontade de conhecer Deus. Infelizmente, os exemplos são mal escolhidos. Milhões de homens não ligam para o patriotismo, a piedade ou o senso estético, não têm o menor interesse ativo em conhecer Deus.

Por que os antimarxistas não citam uma qualidade espiritual que seja verdadeiramente universal? Pois aqui vai uma. Refiro-me à covardia. De uma forma ou de outra, ela é visível em todo ser humano; serve também para separa o homem de todos os outros animais superiores. A covardia, acredito, está na base de todo o sistema de castas e na formação de todas as sociedades organizadas, inclusiva as mais democráticas. Para escapar de ir à guerra ele próprio, o camponês deva de mão beijada certos privilégios aos guerreiros – e destes privilégios brotou toda a estrutura da civilização. Vamos recuar mais ainda no tempo. Foi a propriedade que levantou a lebre de que uns poucos homens relativamente corajosos foram capazes de acumular mais posses do que hordas de covardes – e, como se fosse pouco, de mantê-las depois de acumuladas.



O DONO DA VERDADE

O homem que se gaba de só dizer a verdade é simplesmente um homem sem nenhum respeito por ela. A verdade não é uma cosia que rola por aí, como dinheiro trocado; é algo para ser acalentada, acumulada e desembolsada apenas quando absolutamente necessário. O menor átomo da verdade representa a amarga labuta e agonia de algum homem; para cada pilha dela,, há o túmulo de um bravodono da verdade sobre algumas cinzas solitárias e uma alma fritando no Inferno.



O FILÓSOFO

Não há registro na história humana de um filósofo feliz: só existem nos contos da Carochinha. Na vida real, muito cometeram suicídio; outros mandaram seus filhos por afora e surraram suas mulheres. Não admira. Se você quiser descobrir como um filósofo se sente quando se empenha na prática de sua profissão, dê um pulo ao zoológico mais próximo e observe um chimpanzé na sua chatíssima e infindável tarefa de catar pulgas. Ambos –o filósofo e o chimpanzé – sofrem como o diabo, mas nenhum dos dois consegue ganhar.



O ALTRUÍSTA

Uma grande parte do altruísmo, mesmo quando perfeitamente honesto, baseia-se no fato de que é desconfortável ver gente infeliz ao nosso redor. Isto se aplica especialmente à vida familiar. Um homem faz sacrifícios para satisfazer os caprichos de sua mulher, não porque adore desistir da idéia de comprar o que ele realmente quer para ele, mas porque seria pior ainda vê-la d cara amarrada na mesa do jantar.



O ICONOCLASTA

O iconoclasta se afirma quando prova com suas blasfêmias que este ou aquele ídolo não passa de uma besta – e deixa cheio de dúvidas pelo menosum dos que o ouvem. A liberação da mente humana avançou muito quando alguns gaiatos depositaram gatos mortos em santuários e depois saíram pelas ruas espelhando que aquele deus no santuário era uma fraude – provando a todo mundo que a dúvida era uma coisa legítima. Um relincho vale por 10 mil silogismos.



O ESCRAVO

Não me diga o que ele vê de tão divertido a respeito de Deus, ou qual artista de circo ele segue em política, ou como agüenta submeter-se àquela mulher. Diga-me apenas como ele ganha a vida. Um homem que consegue casa e comida de maneira ignominiosa será, inevitavelmente, um homem ignominioso.



INTERMEZZO SOBRE A MONOGAMIA

O predomínio do casamento monogâmico no reino de Cristo é comumente atribuído a considerações éticas. Isto é tão absurdo quanto atribuir à guerras a mesma consideração. A simples verdade é a de que tais considerações não passam de deduções extraídas da experiência e são rapidamente abandonadas quando a experiência se volta contra elas.

No presente caso, a experiência ainda está abundantemente a favor da monogamia; os homens civilizados a preferem, porque acham que a monogamia funciona. E por que funciona? Porque é o mais eficiente de todos os antídotos disponíveis aos alarmes e terrores da paixão. A monogamia, em suma, mata a paixão – e a paixão é o mais perigoso de todos os inimigos da supostaci vilização, a qual é baseada na ordem, no decoro, na repressão, na formalidade, no trabalho e na disciplina.

O homem civilizado; o homem civilizado ideal; é aquele que nunca sacrifica a segurança dos seus por paixões particulares. Ele chega à perfeição quando deixa de
amar apaixonadamente; quando reduz a mais profunda de suas experiências instintivas, do nível do êxtase para o nível de um mero estratagema para municiar exércitos ou construir fábricas, mandar reformar suas roupas, reduzir a mortalidade infantil, arranjar mais inquilinos para cada senhoria ou informar a polícia sobre o que qualquer cidadão pode estar fazendo de dia ou de noite.

A monogamia consegue tudo isto ao destruir o apetite.

Ela força as duas partes contratantes a uma intimidade tão persistente quanto não atenuada; estão sempre firmemente de acordo em muitos pontos. Pouco apouco, o mistério do relacionamento se evapora e o homem e a mulher atingem aquele ponto assexuado de irmão e irmã. Portanto, aquele maximum de tentação de que fala George Bernard Shaw já contém em si as raízes da sua própria decadência. Todo marido começa por beijar uma garota bonita (sua esposa) e termina maquiavelicamente evitando beijar aquela com quem ele partilha diariamente as refeições, os livros, as toalhas de banho, a carteira, os parentes, as ambições, os segredos, as doenças e os negócios – um procedimento tão romântico quanto o de mandar que lhe engraxem os sapatos. Nem mesmo o inato sentimentalismo do homem onsegue superar o desgosto e a chatice disso tudo. E nem mesmo a capacidade histriônica da mulher pode ver nisto qualquer sombra de volúpia ou espontaneidade.

Os defensores da monogamia, iludidos pelos seus reflexos morais, deixam de usufruir todas as vantagens que há nela. Considere, por exemplo, a importância moral de preservar a virtude dos não-casados; ou seja, daqueles ainda capazes de se apaixonar.

O atual plano para se lidar com, digamos, um jovem de vinte anos é cercá-lo de espantalhos e proibições; para tentar convencê-lo logicamente de que a paixão é perigosa. Isto é um abuso e uma imbecilidade; abuso, porque ele próprio já sabe que ela é perigosa; e imbecilidade, porque é impossível sufocar uma paixão lutando contra ela.

A maneira de matá-la é dar-lhe corda sob condições desfavoráveis e desanimadores; para vergá-la ao chão, pouco a pouco, até reduzí-la a um absurdo ou horror. Muito mais ainda poderia ser conseguido se fosse proibida a poligamia a estes jovens antes do casamento, mas permitida a monogamia. A proibição, neste último caso, seria relativamente fácil de impor, ao invés de impossível, como no outro. A curiosidade ficaria satisfeita; a natureza sairia da jaula; mesmo o romance teria a sua chance, 99% dos jovens se submeteriam, mesmo porque seria mais fácil submeter-se do que resistir a ela.

E o resultado? Obviamente seria louvável – isto é, aceitando-se a atual definição de louvável. O resultado final, seis meses depois, seria um jovem desiludido e no cabresto, tão desprovido de paixão quanto um velho de oitenta anos – em suma, o cidadão ideal do reino de Cristo.



MEDITAÇÃO DE SÁBADO

Às vezes chego a suspeitar de que meu principal problema é o fato de ser desprovido do que se costuma chamar de dons espirituais. Ou seja, sou incapaz de experiência religiosa, em qualquer sentido. Algumas cerimônias religiosas me interessam esteticamente e, com alguma freqüência, até me divertem, mas não extraio delas nenhum estímulo, nenhuma sensação de exaltação, nenhuma catarse mística.

Neste departamento, sou tão palerma quanto o organista da igreja, o coroinha do altar ou o próprio arcebispo. Quando me sinto deprimido e cheio de miséria, não tenho o menor impulso de pedir ajuda, ou mesmo consolo, nos poderes sobrenaturais. Assim, a generalidade das pessoas religiosas continua misteriosa para mim, além de vagamente insultuosa, assim como sou inquestionavelmente insultuoso a elas. Para mim, um homem rezando e outro portando um pé de coelho para lhe dar sorte são igualmente incompreensíveis. Esta falta de compreensão tem-me causado inimizades, acredito que duradouras. Tenho ojeriza a qualquer homem religioso, e todos os homens religiosos que conheço têm ojeriza a mim.

Sou apenas um ateu militante e não tenho a menor objeção que se vá a igrejas, desde que honestamente. Eu próprio já entrei em igrejas mais de uma vez, procurando sinceramente sentir o estalo de que tanto falam as pessoas religiosas. Mas nem mesmo na Catedral de São Pedro, em Roma, senti o mínimo sintoma do estalo. O máximo que já senti no mais solene momento da mais pretensiosa cerimônia religiosa foi um deleite sensual por sua beleza – um deleite exatamente igual ao que me invade quando ouço, por exemplo, Tristão e Isolda ou Quarta Sinfonia de Brahms. O efeito de tal música é, na realidade, mais agudo que o da liturgia, mas só porque Brahms me comove mais poderosamente que os santos.

Como se vê, esta deficiência é uma desvantagem num mundo populado, em esmagadora maioria, por homens inerentemente religiosos. Isto me afasta de meus semelhantes e torna difícil para mim compreender muitas de suas idéias e não poucos de seus atos. Vejo-os responder, de maneira firme e constante, a impulsos que a mim parecem inexplicáveis. Pior ainda, faz com que eles me compreendam, a ponto de me infligirem sérias injustiças.

Não conseguem se livrar da idéia de que, por ser apático aos conceitos que os comovem profundamente, só posso ser um homem de tal aberração moral que devo ser mantido à distância. Nunca cruzei com um homem religiosa que não revelasse essa suspeita. Não importa a sua sinceridade em tentar entender o meu ponto de vista, sempre termina por bater em alarmada retirada. Todas as religiões ensinam que o não-conformismo é pecado; muitas delas fazem disto o mais negro dos pecados, e o punem severamente, se tiverem poder suficiente. É impossível para este homem tão religioso duvidar da justiça desse julgamento. Ele simplesmente não consegue imaginar uma regra de conduta que não se baseie no temor a Deus.

Devo acrescentar que minha deficiência reside no impulso religioso fundamental, Não na mera credulidade teológica. Não me mantenho longe da igreja por não ser capaz de acreditar em seus dogmas atuais. Para dizer a verdade, alguns me parecem bastante razoáveis e, provavelmente, discordo deles com menos veemência do que muitos que lhes são assíduos devotados. Entre minhas experiências curiosas, há alguns anos, houve a de tentar um ardente católico que não acreditava na infalibilidade papal.

Tratava-se de um fiel filho da igreja, e sua incapacidade para aceitar o dogma o angustiava. Provei-lhe, e ele pareceu satisfeito, que não havia nada de intrinsecamente absurdo na tal infalibilidade papal – já que, se os dogmas que ele
já tinha adotado fossem verdadeiros, este provavelmente também o seria. Algum tempo depois, quando este homem estava nas últimas, fui visitá-lo e ele me agradeceu com aparente sinceridade por ter resolvido sua velha dúvida.

Mas nem ele conseguia compreender minha falta de religião. Suas últimas palavras para mim foram as de esperança que eu abandonasse minha teimosia em relação a Deus e levasse uma vida mais pia. Morreu firmemente convencido de que eu estava condenado ao Inferno – e, o que é pior, tendo feito por merecê-lo.

(Trad: Ruy Castro)

Um comentário:

  1. Você é um jovem culto e já acompanhava seus "twets" no Orkut. Agora, expondo seu pensamento num blog irá nos brindar com bons e indagantes artigos.
    Parabéns pelo blog.

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